In illo tempore: ou como escapar ao tempo que mata
O que apareceu primeiro na história da humanidade: os mitos ou os filmes? Ou antes: quando estamos sozinhos no escuro, porque antes de tudo é o escuro, quais são as histórias que contamos sobre nós mesmos, sobre os lugares de onde viemos? E para que servem essas histórias? São espelhos onde nos vemos? Ou são mapas onde nos queremos encontrar, ou perder
Comecemos pelos mitos primeiros, aqueles que mostram o mundo a tornar-se mundo: a floresta e, depois, a gente da floresta. Na medida em que provam a origem e a existência de um povo, de um grupo ou de uma sociedade, os mitos estão revestidos da força da autoridade. São a lei que nos explica e que nos desenha os limites: são as regras para a nossa sobrevivência. Como argumentou Jean-Pierre Vernant, ao falar do mito não falamos propriamente de uma cronologia, ou de um antes e de um depois, mas de uma genealogia. Somos filhos das nossas histórias. Desde as tradições mitológicas e primitivas das sociedades arcaicas, repetiram-se gestos e histórias e revelaram-se personagens exemplares, sobrenaturais e arquetípicas, boas e más. Irrompeu o sagrado. A casa explodiu as paredes, tornou-se templo. A deusa entrou no corpo.
Federico Campagna escreve que a mitologia, mais próxima da ficção e do fantástico e sem aspirar a consolidar-se como verdade factual, incorpora a indefinição e o excesso da linguagem. O mito é o tudo que não cabe nas mãos. Nele, as narrativas e as aspirações das personagens, mas também as suas falhas e as suas contradições, comungam, todas, do mesmo mistério. A tradução é nossa: “Os mitos transformam as nossas dúvidas existenciais em skepsis: uma dupla investigação sobre a escuridão sem sentido que nos envolve e a luz imaginária que precisamos de lançar à nossa volta. É uma forma de sabedoria existencial combinada com conhecimento abstracto. A mitologia, neste sentido, é a mãe exemplar da filosofia e a descendente legítima da ciência.” Não se trata, portanto, de mera fabulação, mas de uma verdadeira sabedoria prática, reiterada, que torna as representações colectivas de carácter mítico numa expressão fundamental da vida. E nós, que vivemos por experiência e por citação, tentamos, como o rio arredonda a pedra, domar a riqueza do mito, a sua desmesura, pelo rigor dos nossos rituais. Carregamos esse saber às costas. Para além de darem forma concreta ao mito, os ritos possibilitam a sua vivência, a sua repetição cíclica, e permitem-nos, pelas regras que impomos ao corpo, aceder à atmosfera mítica: seja ao subir uma escadaria, a querer dar forma à terra, ou a caminhar sobre uma linha na areia.
Os filmes, nesse sentido, estes filmes, são, ao mesmo tempo, os mitos e os ritos, porque são os mitos e a forma dos mitos, e porque só existem pelo processo mecânico, sempre igual, das imagens se seguirem umas às outras e da luz se filtrar de sombras: pela repetição cerimonial desse processo. O sedimento dessa repetição torna-se a única verdade. É por isso que quando, num dos filmes deste ciclo, uma diligência rasga um território que não é seu, as pessoas sentadas na sala de cinema vêem na paisagem fotografada e no esplendor desse continente sem fim um direito de pertença. O facto é que não há abismo entre a vida e o pensamento. Se a noção de mito, na tradição da cultura ocidental, se opôs, primeiro, à de logos e, mais tarde, à de história, acabando a ser utilizada no sentido de ficção, tradição sagrada ou revelação primordial, o que nos propomos mostrar a partir destes filmes é que o pensamento mitológico opera da mesma forma que o pensamento conceptual, e que a mitologia e a história se afectam reciprocamente.
Tentámos, por isso, desenhar um brevíssimo retrato do mundo: dos seus medos e crenças, das suas máscaras e das suas pequenas fugas, quaisquer que elas sejam. Os filmes que trazemos a este ciclo criam e codificam, uns, e outros interpretam ou actualizam as estruturas míticas que dão sentido ao quotidiano e às relações humanas, sócio-económicas, políticas, ecológicas e tecnocientíficas das várias geografias e nas várias épocas. Importou-nos dar a ver a complexidade dos mitos e das suas circunstâncias: o modo como eles formam os comportamentos, as instituições e os modos de existir, mas também, e talvez por essa mesma razão, conduzem à guerra e à destruição. Os barcos tanto morrem no mar como no deserto. Entre as práticas esotéricas e o imaginário colectivo, e entre a história do pensamento e as mitologias contemporâneas, todos estes filmes reiteram o poder vivo do mito e o significado que ele dá à nossa existência.
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