Merry Christmas, Mr. Lawrence
Ece Canlı
21 de Setembro de 2024

No documentário Ryuichi Sakamoto: Coda, de 2017, o falecido Sakamoto recorda que, quando recebeu o convite de Nagisa Ōshima para protagonizar a sua próxima longa-metragem, o seu entusiasmo e energia eram tantas que, em vez de apenas aceitar a oferta, respondeu: “Só se também puder compor a banda sonora do filme.” Este desafio, aparentemente predestinado, marcou a estreia de Sakamoto enquanto ator e compositor de bandas sonoras para cinema. Merry Christmas, Mr. Lawrence (também conhecido como Furyo), uma narrativa draconiana sobre os tempos da guerra, transformar-se-ia assim num melodrama homoerótico melodioso. É certo que o filme também se encontra associado à filmografia musical devido a David Bowie, coprotagonista, mais um extraordinário artista multifacetado e, sem dúvida, o equivalente ocidental de Sakamoto. A união entre estas duas presenças impressionantes no contexto do estilo visual distinto de Ōshima, das paisagens desoladoras e dos grandes planos, deixa-nos com um sentimento nostálgico de comemoração, sobretudo pelas cores proibidas. [1]

Baseado vagamente no romance autobiográfico The Seed and the Sower, do africânder Laurens van der Post, o filme passa-se em Java, em 1942, num campo japonês de prisioneiros de guerra onde militares Aliados se encontram presos, no auge da Segunda Guerra Mundial. A história começa quando o major Jack Celliers (David Bowie) é levado a julgamento perante um tribunal militar japonês, escapando por pouco à pena de morte e sendo consequentemente transferido para o campo comandado pelo capitão Yonoi (Ryūichi Sakamoto). Depois do seu primeiro encontro no julgamento, Yonoi fica compreensivamente fascinado, de forma obcecada, pelo recalcitrante, imperturbável e enigmático Celliers. À medida que o filme avança, o desejo reprimido de Yonoi por Celliers intensifica-se, criando uma tensão e um tumulto que afetam não só o sensato tenente-coronel John Lawrence (Tom Conti), camarada de Celliers, como o leal sargento de Yonoi, Hara (Takeshi Kitano), perturbando todo o acampamento.

À primeira vista, o filme parece depender de binários rigorosos — Oriente e Ocidente, bom e mau, homossexualidade e heterossexualidade, e subjugação e dominação, evidenciados tanto a nível contextual como artístico. Numa entrevista de 1983, por exemplo, Bowie nota como o filme se constrói numa justaposição bem afinada entre as interpretações estilizadas dos atores japoneses e o neorrealismo dos westerns, reconhecendo que uma versão ocidental do filme teria sido uma antítese total desta sensibilidade japonesa. Contudo, o objetivo de Ōshima não era reforçar estes contrastes evidentes, mas sim desvendar os seus emaranhados complexos para lá das normas socioculturais, sobretudo no que diz respeito à honra, ética, espiritualidade e sexualidade. O filme mistura assim as duras realidades da guerra, a violência e a masculinidade tóxica (cenas de prisioneiros que testemunham o seppuku, a desumanização da homossexualidade, os recolheres obrigatórios, a fome forçada, e o abuso de poder arbitrário, desde espancamentos a execuções) com momentos de afinidade, solidariedade e bromance (incluindo a sinceridade e compaixão de Lawrence pelo “outro lado”, a distribuição secreta de comida que Celliers leva a cabo, apesar da ordem de jejum, a absolvição de Lawrence e Celliers por Hara, na véspera de Natal, e o profundo afeto de Yonoi por Celliers). As relações entre estes quatro homens complicam ainda mais as dinâmicas de poder: Lawrence, o único prisioneiro que fala japonês, serve de bússola moral enquanto Celliers, atormentado pela culpa do passado e em desafio à opressão, expõe a futilidade da vida e da morte; Hara, mais monárquico do que o rei, testa os limites da autoridade enquanto que Yonoi faz tudo para preservar o seu sentido de ordem incluindo, na ausência de um culpado, punir uma pessoa inocente por um crime. Através desta tensão crescente e palpável, Merry Christmas, Mr. Lawrence evolui para um drama conduzido pelas personagens, em que os conflitos internos são tão intensos como a própria guerra, com batalhas invisíveis combatidas no íntimo de cada homem.

É justo dizer que, neste filme de guerra com um elenco totalmente masculino, sem mulheres, e centrado em desejos masculinos homossexuais reprimidos, o verdadeiro protagonista é a masculinidade hegemónica — constantemente a reivindicar-se, a destruir-se e a reconstruir-se num círculo vicioso. Isto torna-se mais evidente na famosa “cena do beijo”, em que Celliers arrisca a vida ao avançar e beijar Yanoi para salvar o capitão Hicksley (Jack Thompson) e os outros prisioneiros da ira arrogante de Yonoi. O beijo parece o clímax do filme, o centro de gravidade que faz com que todos os outros acontecimentos sejam centrípetos em direção a este momento, uma erupção que faz jorrar todos os tabus e pensamentos não assumidos. E, claro, ao contrário do beijo que acorda a Bela Adormecida, este golpe imprevisto na heteronormatividade não fica impune; Yonoi colapsa instantaneamente e Celliers, depois do seu feito “diabólico”, é enterrado vivo.

Nos estudos contemporâneos sobre os media, “bury your gays” (“enterrem os gays”) descreve o tropo de mortes desproporcionais de personagens gays. Em Merry Christmas, Mr. Lawrence, Yonoi enterra literalmente o gay que há em si. E os sentimentos, a verdade e a justiça são também enterrados com Celliers. Contudo, a cena final deixa-nos mais tristes do que furiosos, ao vermos a banalidade do mal no grande plano do rosto do sargento Hara que, quatro anos antes, pungentemente saúda “Merry Christmas, Mr. Lawrence!”, (“Feliz Natal, Mr. Lawrence!”), na noite anterior à sua execução como criminoso de guerra. Porque o que Lawrence diz a Hara permanece sempre relevante: “Somos todos vítimas de homens que acham que têm razão.”

[1] Forbidden Colours, a versão cantada por David Sylvian do tema principal da banda sonora, faz referência ao romance homónimo de Yukio Mishima, de 1951 (em português, Cores Proibidas), que explora o choque entre os ideais dos samurais e o amor entre pessoas do mesmo sexo.

Ece Canlı
Ece Canlı é uma investigadora, artista e música cujo trabalho cruza regimes materiais, políticas do corpo e performatividade. É doutorada em Design pela Universidade do Porto e é atualmente investigadora no CECS da Universidade do Minho, onde investiga as condições espaciais, materiais e tecnológicas do sistema de justiça criminal, o encarceramento queer, o design penal e o feminismo da abolição. Como artista, emprega técnicas vocais estendidas e eletrónica para criar som para performances encenadas, exposições e filmes, tanto em colaboração como a solo.

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