małni —towards the ocean, towards the shore, Sky Hopinka
Sofia Victorino
14 de Janeiro de 2023

“Isto é pelos fantasmas”, lemos em inglês e Chinook Wawa numa das legendas de małni — towards the ocean, towards the shore. A primeira longa-metragem de Sky Hopinka é uma reflexão poética sobre a vida, a morte e o regresso, e uma exploração da identidade e pertença dentro da experiência Indígena da América do Norte. Hopinka documenta a relação de uma comunidade com a sua terra, as suas raízes e a sua língua. Através de uma viagem conduzida pelas histórias de amigos próximos do cineasta, Sweetwater Sahme e Jordan Mercier, ambos membros da Nação Chinook, Hopinka entrelaça imagens, palavras e sons numa temporalidade fluida que ultrapassa a cronologia linear.

A montagem fragmentária de paisagens visuais e sónicas, de poesia e mito, e a evocação de tradições ancestrais de tribos Indígenas do Noroeste do Pacífico, é a essência do projeto conceptual e estético de Hopinka. Expandindo um corpo de trabalho desenvolvido desde 2010 em mais de uma dúzia de curtas-metragens experimentais, Hopinka investiga o papel que o cinema desempenha na preservação de culturas indígenas e no desafiar dos modos de representação coloniais. Hopinka cresceu em Ferndale, em Washinghton, numa família afiliada à Nação Ho-Chunk do Wisconsin e à tribo Pechanga dos Indígenas Luiseño, e as viagens fizeram parte da sua formação, na infância. Ambos os seus pais eram performers no circuito powwow (uma assembleia de nações indígenas para prestar homenagem aos seus antepassados). O cinema de Hopinka capta a vibração e a espiritualidade de vozes, danças, e batidas, mas também a dor de uma comunidade despojada da sua terra, cuja cultura foi sistematicamente apagada.

O filme começa com uma ação contemplativa. O oceano transpõe o espectador para um espaço simultaneamente abstrato e concreto, material e espiritual. Embora os seus ritmos, texturas e cores sejam familiares, há uma qualidade melancólica e etérea neste plano de abertura, que nos confronta com os ciclos desconhecidos da mudança. Como sugere o título do filme, estamos num estado de devir e de transição permanente em direção a um novo começo.

A voz de Hopinka como narrador ecoa a busca por significado: “Para onde vamos agora? Talvez para o oceano. Talvez rio acima. Talvez rio abaixo (...) Onde as pessoas estão. Para onde as pessoas vão quando desaparecem. Quando morrem. Onde está o mundo dos espíritos. Lá fora (...).”

A linguagem e a transmissão são temas recorrentes no cinema de Hopinka. O que significa aprender uma língua em risco de desaparecer? Como pode uma língua ter a sua própria agência na nossa mente? Como estudante, o cineasta aprendeu a falar Chinook Wawa, uma língua indígena do noroeste do Pacífico. Durante esse período, interessou-se pelas histórias dos seus professores e das suas relações com os dialetos de determinadas regiões. Em małni — towards the ocean, towards the shore, o uso alternado de legendas em inglês ou Chinook, e o uso de ambas as línguas em diálogos ou narração reafirma como a língua molda diferentes cosmologias e visões do mundo.

O filme encontra-se estruturado em torno de entrevistas com Sweetwater e Jordan sobre a sua herança Chinook. Hopinka viaja através das palavras dos seus amigos, enquanto vagueiam pelas florestas, rios, cascatas e praias; enquanto se encontram em casa, fazem uma viagem de canoa, e conduzem ao longo da Bacia do Rio Columbia. Nesta conversa íntima, voltam a emergir difíceis memórias de infância (crescer em ambientes opressivos, ou os desafios de superar dependências). Existe um sentimento de perda, um lamento. No entanto, existe uma alegria profunda em recordar o caminho dos mais velhos, e relacionar-se com as suas tradições. Sob fortes chuvas, vemos Sweetwater, que está grávida, realizando o primeiro ritual de limpeza da criança que carrega, numa cascata. Vemos Jordan na cerimónia das Tribos Confederadas de Grand Ronde, que inclui mais de 30 tribos e grupos do oeste de Oregon, do norte da Califórnia, e do sudoeste de Washington. Nesta cena extasiante, à medida que participantes de todas as idades se reúnem para a performance da música “New Beginnings”, a câmara segue vozes, corpos, movimentos, formas e sons, numa representação de um sonho fantasmagórico que convoca a energia dos antepassados. Aqui, o cineasta invoca “The Origin of Death Myth” (A Origem do Mito da Morte), como é contado por Mose B. Hudson, avô de Jordan: Lilu e T’alap’as perguntam: “E se, quando as pessoas morrem, regressam no quinto dia?” Para Hopinka, a crença na reencarnação “expressa o sentimento de continuidade familiar”, que é tão importante nas culturas Indígenas da América do Norte.

Entre o cinema experimental e o documentário etnopoético, Hopinka procura desfazer a violência contida nas formas tradicionais de etnografia. Existe uma proposta convincente no seu processo de trabalho: um ato de escuta profunda, que conduz a novas perceções sobre como a realidade pode ser documentada. Ao considerar a empatia e o parentesco, małni — towards the ocean, towards the shore de Hopinka sublinha o potencial efeito calmante da troca comunitária e da solidariedade. O resultado é uma celebração de resiliência coletiva em momentos de colapso pessoal e social e, acima de tudo, uma homenagem àqueles que vieram antes de nós.

Sofia Victorino

Bolseira da FCT no Doutoramento em História Contemporânea da FCSH, Sofia Victorino possui um mestrado em Contemporary Cultural Processes, pela Goldsmiths (Londres). Entre 2011 e 2021 foi Diretora de Educação e Programas Públicos na Whitechapel Gallery (Londres), assumindo funções ao nível da programação artística e curadoria. Anteriormente, foi Coordenadora do Serviço Educativo do Museu de Serralves (2002–2011). Leciona no mestrado Curating Art and Public Programmes, da London South Bank University e integra o Conselho Consultivo da coleção Documents of Contemporary Art, coeditada pela Whitechapel Gallery e pela MIT Press.

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