Letters From a Dead Man
Ricardo Braun
14 de Janeiro de 2023

Há mais de trinta anos que não nos preocupávamos tanto com a possibilidade de um apocalipse nuclear. Nos anos 80, o equilíbrio entre os dois grandes blocos geopolíticos era tão frágil que à mais pequena provocação, ao mais pequeno desentendimento, podia rebentar uma guerra nuclear. Fizeram-se nessa década vários filmes sobre o antes e o depois dessa guerra: quase documentais, didáticos, com dezenas de consultores técnicos e científicos. Limpos como manuais de crise, e absolutamente assustadores. Já em 1965, Peter Watkins tinha filmado para a BBC o maravilhoso e terrível The War Game, mas o filme foi considerado “demasiado horroroso para passar na televisão”. Nos anos 80, já nada era demasiado horroroso. A mesma BBC produz e transmite Threads (meio Ken Loach, meio George A. Romero: kitchen sink apocalypse) e outros países filmam outras versões do mesmo fim. São filmes metódicos, como relatórios militares. São filmes-exemplo.

Letters from a Dead Man, a primeira longa-metragem de Konstantin Lopushansky, não é um filme-exemplo. É, diria eu, um filme-ensaio. Uma coisa é evidente: a forma como aqui chegámos não lhe interessa particularmente. Quando o filme começa, já a imagem está tingida por uma luz amarela, doente. O velho (o homem morto do título) já morreu, e não morreu ainda. Ele e a sua mulher estão fechados na cave de um museu, protegidos do ar venenoso da superfície. Dois motivos na obra de Lopushansky: o museu como Arca de Noé da ideia de civilização, e as várias formas como essa civilização, a nossa, está destinada a acabar pelas próprias mãos. Letters from a Dead Man é o primeiro filme do seu Quarteto do Apocalipse. Umas vezes bélico, outras climático. Este explodiu com o brilho de dez mil sóis. As paredes rasgam-se como papel. O vento é denso, metálico. E a poeira suspensa acabou com o ciclo dos dias e das noites, que existia desde o princípio da criação porque “até Deus precisava de uma noção do tempo”. É uma das coisas que o velho escreve numa de várias cartas que nunca chegarão ao destinatário. Outra personagem escreve “o esboço de uma mensagem à civilização do futuro”. Ambos escrevem cartas ao futuro. Mas que futuro será esse, e que civilização as vai ler?

Numa entrevista, perguntam a Lopushansky se é otimista ou pessimista. Ele cita Aleksandr Blok (não encontrei a fonte, mas vou confiar nele): “O otimismo é uma péssima filosofia porque não compreende a tragédia da vida humana”. Ele (Lopushansky) compreende-a. Mas será justo chamá-lo um pessimista? O velho do filme não pode, não quer acreditar que o mundo morra simplesmente (mas isso talvez venha de uma responsabilidade pessoal: fala-se das suas descobertas, que lhe valeram um Nobel). Não sabemos ao certo quem é este homem e não interessa. Saberemos, mais à frente, que não foi preciso que ninguém começasse a guerra. Afinal, a humanidade pode acabar devido a um erro humano.

E depois disso, o que resta? O primeiro ato desta civilização a formar-se é juntar aqueles que a vão constituir e abandonar à sua sorte aqueles de que não precisa: os órfãos, os doentes, os velhos. A cave do museu vai guardá-los, eles e tudo o que deixou de ter valor: a arte e a História, os livros salvos da fornalha, as ideias. Os mortos que, apesar de tudo, continuam a viver.

Para simplificar, digamos que há dois tipos de realizadores russos: os encenadores e os pintores. Lopushansky estudou com ambos. Emil Loteanu é um dos primeiros: literário, coral, coreográfico na forma como arranja os atores e a câmara, excessivo (daquele excesso contra o tédio que Tchékhov tão bem escreveu). Mas foi outro dos seus professores aquele que foi verdadeiramente formador na estética e na ética de trabalho de Lopushansky, e era o mais importante dos realizadores- pintores: Andrei Tarkovsky. Pintor como os pintores de ícones, como o outro Andrei, o Rublev: um pintor- monge, poeta, filósofo. Quando pôde escolher com quem queria estagiar, Lopushansky aceitou o convite para se juntar à rodagem de Stalker, e a experiência foi definidora. Esse filme, como este, também começa e acaba a amarelo, mas é mais do que isso, obviamente: com Tarkovsky, ele aprendeu a abnegação, a ideia de que fazer um filme é, primeiro, um ato moral, e de que tudo o resto é secundário. A crença de que não é possível servir a arte sem sacrifício (outro título do mestre).

Perto do fim de Letters from a Dead Man, há uma cena que podia ter sido filmada por Tarkovsky. E, na verdade, foi, em Nostalgia: um homem atravessa um espaço, da direita para a esquerda, com a chama de uma vela na mão, tentando que ela não se apague. Depois de várias tentativas, consegue, cumpre o que tinha prometido, e morre. Aqui, é uma menina quem leva a chama guardada na cova da mão. Atravessa da direita para a esquerda. E, depois, acende outras velas. Cumpriu a sua missão? Viverá? Antes de morrer, o velho deixa- lhes uma profecia: “Lembrem-se, o mundo não morreu. (...) Enquanto o homem seguir o seu caminho, há esperança para ele.” Lopushansky sabe muito bem que o mundo pertence aos órfãos.

Ricardo Braun

Licenciado em Som e Imagem pela UCP, Ricardo Braun foi assistente de dramaturgia e encenação de Nuno Cardoso, Rogério de Carvalho e João Pedro Vaz. Em 2012, fundou a OTTO e coencenou Katzelmacher, a partir da peça e do filme de R. W. Fassbinder. Orientou o grupo amador do Ao Cabo Teatro, dirigindo-o em espetáculos a partir de textos de Jean Anouilh e Ben Jonson/Stefan Zweig. Traduziu, ainda, obras de Marius von Mayenburg, Lars Norén e Ödön von Horváth. Atualmente, leciona dramaturgia no Balleteatro e é livreiro na Livraria aberta.

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