Rostos da guerra
Por debaixo de um mundo mediatizado em que os significados adquirem as características dos seus contrários, como vemos com a guerra ou a doença, há uma revolução epistémica em curso que reclama para os próprios sujeitos a prerrogativa de uma ressignificação ontológica, de modo a que a produção de sentido na vida de cada um se possa libertar do modelo sócio-económico vigente. A cultura, hoje, vive de rótulos, inscrita numa legitimação mercantil que procura arrastar a subjectividade para um canto escuro onde ninguém a reconheça, mas é aí — onde mais seria? — que esta congemina as suas estratégias de reinvenção. Com a viragem do milénio tornou-se claro que todas as aparentes fugas do mapeamento comercial da arte estavam, afinal, perfeitamente controladas: o indie, aparentemente tão sedutor na sua irreverência, não era mais do que o tentáculo mais trendy do mainstream. A crítica, outrora incompreendida pela alegada propensão elitista, foi chamada a render-se ao fetichismo da mercadoria artística, incensando não raras vezes o que antes execrava. Para os desalinhados, o horizonte do desemprego aproximava-se como um espectro fatal. E as artes, de um modo geral, como os vidros, os plásticos e os papéis, eram arrumadas nos seus contentores. Lá de longe, porém, qual comboio que apenas ouvimos mas cuja cavalgada já se prenuncia impactante, soavam gestos de um amor resistente, sementes propositivas de uma mudança de dentro para fora, isto é, alinhada com um sentir artístico, inegociável nos parâmetros de um mercado apenas disposto a arrendar parcelas pré-fabricadas do seu território.
Tal como os corpos se eximiram às conveniências dos inventariantes, reclamando uma liberdade criativa sem a qual permaneceriam instrumentos de uma lógica produtiva e reprodutiva essencial ao crescimento da desigualdade no mundo, também os objectos de arte constrangidos pelas regras de mercado fugiram a uma decifrabilidade que prescindisse das competências inalienáveis do sujeito. Se as raízes profundas de uma decisão são do seu autor, é de um grau compatível de profundidade sensorial ou interpretativa que há de vir a sua compreensão. Dito de forma simples, era o mistério da existência humana que se via defendido da devastação pornográfica por agentes comprometidos com valores maiores do que preços, ainda que em condições vulneráveis de sobrevivência artística. Laura Carreira, jovem cineasta portuguesa que emigrou para a Escócia na procura de viabilizar um sonho ironicamente anunciado pelo seu apelido, compreendeu cedo que a atomização da sociedade e a precariedade tanto das estruturas que apoiam a criação como das lógicas que as norteiam e dos meios disponíveis não se circunscrevia ao nosso pobre país, mas a vontade de se exprimir artisticamente prevaleceu sobre as dificuldades e, a expensas próprias, depois de muito sacrifício, conseguiu concretizar Red Hill, a curta-metragem com que mostrou ao que vinha, ou, pelo menos, as fundações do edifício que se propunha a construir: um cinema social, empático, que se põe na pele daqueles que observa e retrata — tendencialmente, anti-heróis vergados a uma dependência desproporcional do trabalho, sobre os quais recai o estigma injusto da responsabilidade própria pelo autofracasso.
Desse ponto de vista, e embora este argumento se ponha a jeito de interpretações perversas, talvez os condicionalismos orçamentais quer de Red Hill quer do posterior The Shift tenham aproximado o para cá eo para lá do cinema, conferindo à câmara quase um papel de espelho. Não que estes dois pequenos objectos fílmicos sejam de natureza documental, eles seguem um guião ficcional rigorosamente construído, mas torna-se difícil acompanhá-los sem a sensação de termos a vida a passar-nos à frente dos olhos. A arte de Laura Carreira está, pois, também, na sua capacidade de fintar os rótulos e propor uma visão do cinema que usa as parcas ferramentas de que dispõe ao serviço de uma noção de justiça social em nada descompassada de uma ideia profunda de verdade. Porque se o ponto de partida destes filmes é observacional, se a sua raiz primeira são emoções e sentimentos gerados pelas assimetrias e desarticulações da vida, o ponto de chegada não deixa de reflectir esse registo, mesmo que a ficção tenha sido convocada para a dança enquanto veículo potenciador de riqueza. Dito de outro modo, serão sempre mais as pessoas a viver os filmes de Laura Carreira do que a vê-los. Tanto Red Hill como The Shift mostram uma realizadora idiossincrática — sem prejuízo de lhe detectarmos influências de Ken Loach ou dos Dardenne — e de pulso firme, que alia sensibilidade humana e sangue frio, crueza e lirismo, agressividade e subtileza.
E, apesar dos finais em aberto, ambas as obras proporcionam traços nítidos de um ideário de comunidade a consolidar-se no espírito da cineasta. Juntas nas questões que colocam, desde logo uma à outra — o embargo angustiante da voz de Jim, vigilante nocturno de Red Hill, parece perguntar a Anna, operária agenciada de The Shift: “É assim que vais querer acabar a tua vida?” — , mas também a cada espectador e à sociedade no seu todo, prefiguram-se como pilares de um percurso cinematográfico e activista que merece ser incentivado e alimenta as maiores expectativas.
Marcos Cruz
Licenciado em Comunicação Social pela Escola Superior de Jornalismo do Porto, integrou a redação do Diário de Notícias durante 16 anos, a maior parte dos quais como responsável pela secção de Cultura da delegação Norte. Colaborou com os jornais Correio da Manhã e Norte Desportivo e fez crítica de teatro, música e cinema, tendo sido júri em vários festivais de cinema do país. É autor do livro Os pés pelas mãos (Coolbooks, 2018). Atualmente, é copywriter na Casa da Música e organiza e modera um ciclo de debates no Coliseu do Porto.
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