Tempo para matar: os Last Movies de Stanley Schtinter
Erika Balsom
29 de Abril de 2023

Como coloca o artista e curador Stanley Schtinter, Last Movies permite-nos “ver aquilo que aqueles que já não veem viram pela última vez.” Esta maratona de exibições dos últimos filmes vistos por pessoas famosas coloca o meio do cinema em contato com a questão da morte. Entre os dois, não existe o choque da justaposição, mas a contaminação da semelhança: enroscam-se confortavelmente um no outro como os amigos íntimos que são. Há o cliché, tão familiar quanto impossível de verificar, que quando chega a tua hora a vida inteira passa-te à frente dos olhos, como um filme experimentado num instante dilatado. (Quer isto dizer que estes últimos filmes foram na verdade penúltimos filmes?) E depois há as muitas evocações do cinema enquanto um memento mori moderno: é “a morte no trabalho” (Cocteau), “a mudança mumificada“ (Bazin), “a morte vinte e quatro vezes por segundo” (Mulvey). O meio coloca-nos face a face com a finitude, não porque as histórias que conta sobre a morte sejam particularmente convincentes, mas porque capta vestígios efémeros de vida e reanima-os para sempre, infundindo o passado petrificado com uma vitalidade espectral. Em 1929, Jean Epstein arriscou que “a morte faz a sua promessa através do cinematógrafo”. O empreendimento épico de Schtinter une estes votos ao momento da sua concretização.


Normalmente, o écran cintilante apenas sussurra silenciosamente vanitas vanitatum. Este sussurro provavelmente transformou-se em rugido para Bette Davis quando, em 1989, aos 81 anos e doente com cancro, a estrela assistiu ao último filme da sua vida, um dos seus: Waterloo Bridge (1931), de James Whale. Nele, tem apenas um pequeno papel, sexto nome no genérico. No entanto ela está lá, a sua juventude auto-preservada ao longo das décadas como um inseto em âmbar. Entre as seleções de Schtinter, o ultimo filme de Davis destaca-se pela sua aparente intencionalidade. É como se a estrela doente tentasse a um tempo derrotar e abraçar a morte ao revisitar uma das suas aparições iniciais no écran. Claro que poderia ter sido mais uma obrigação profissional: Davis estava a receber um prémio do Festival Internacional de Cinema de San Sebastian, onde também decorria uma retrospectiva de Whale. Provavelmente tinha de estar ali, querendo ou não. Quem sabe se sabia que seria a sua última visita ao cinema. Mas esperem – estaria Davis na projeção, sequer? É possível, provável até, mas o registo histórico não pode confirmá-lo.


Os últimos filmes têm tendência para ser assim: não são escolhidos da forma que uma última refeição seria escolhida por um prisioneiro à espera da execução. E dependendo das circunstâncias, a sua condição de “úlimos” pode levantar alguma resistência à verificação, mergulhando o curador e o público nos prazeres e perigos da especulação. A morte é uma certeza – mas o momento da sua chegada, para a maioria, pelo menos, é tudo menos isso. Um último filme é apenas outra batida banal no ritmo da vida até à visita da ceifeira. Depois ocorre uma mudança profunda; retroativamente, o filme transforma-se num artefato crepuscular que nunca tinha sido antes, colorido pela sombra da aproximação iminente da morte, unido para sempre ao fim de uma vida ilustre. Apesar de Schtinter incluir mortes que foram planeadas (o culto de Heaven’s Gate) e mortes que eram talvez, de alguma forma, previstas (Bruce Chatwin), a sua iniciativa é uma homenagem macabra à curiosidade e ao horror que esta contingência radical inspira. À medida que as muitas horas do programa se acumulam, podem surgir perguntas na mente do espetador: será a condição de “últimos” destes últimos filmes significativa de alguma forma ou é um simples facto? É apenas uma ficção plausível? O que revelam estes filmes sobre as vidas a que pertencem? Talvez algo; provavelmente nada. Cada título suscita um desejo de significado – cada último filme é uma incitação ao discurso, uma história a ser contada – e cada um permite igualmente que a ameaça do absurdo se espalhe descontroladamente.


Last Movies reúne as suas seleções pela força de um acontecimento externo, um acontecimento que se sustenta não nos próprios filmes, mas em detalhes pouco conhecidos das suas histórias de exibição, e depois os ordena não de acordo com uma visão curatorial mas por data de desaparecimento. Abandona todos aqueles critérios calcificados usados mais frequentemente para organizar programas de filmes: período, nação, género, realizador, estrela, tema. Nada inerente a estes filmes motiva a sua inclusão, muito menos a sua “qualidade”. Apesar de Schtinter poder escolher uma morte para pesquisar, o título a ser mostrado é ditado pela história. Tudo isto para dizer que Last Movies abraça o acaso, uma estratégia avant-guarde que o seu maestro é conhecido por conduzir em empreendimentos anteriores.


E assim deve ser para um programa sobre a morte. A tenacidade da retrospectiva da “análise da vida” enquanto um tropo nos filmes de ficção pode ser atribuída ao facto de que as pessoas que tiveram experiências de quase morte afirmam ter-se deparado com o fenómeno. É mais provável que esta convenção perdure porque satisfaz uma fantasia reconfortante: a de que a vida acabará por alcançar a coerência. A fantasia desse “último filme” é desfeita pela realidade dos Last Movies de Schtinter. São muitas vezes aleatórios e em grande medida não escolhidos; lançam significado à crise e exigem aquiescência à externalidade. Por outras palavras, são como a própria morte.

Erika Balsom

Docente em Estudos em Cinema no King’s College London e autora de quatro livros, incluindo After Uniqueness: A History of Film and Video Art in Circulation (Columbia University Press, 2017) e TEN SKIES (Fireflies Press, 2021), selecionado para o prémio Kraszna-Krausz. As suas críticas são regularmente publicadas em meios como Artforum, Cinema Scope e 4Columns. Em 2022, fez a curadoria, com Hila Peleg, da exposição No Master Territories: Feminist Worldmaking and the Moving Image, apresentada na Haus der Kulturen der Welt (Berlim), e foi coeditora do livro que lhe está associado, publicado pela MIT Press.

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