“Ladybird, ladybird fly away home,
Your house is on fire and your children are gone”
Escrevo sobre Ladybird, Ladybird exatamente 30 anos após a estreia do filme. “Que coincidência feliz” penso, apesar de estar a regressar de uma conferência onde nós, académicos e ativistas, discutimos durante três dias intensos sobre o trabalho precário, o trabalho não remunerado dos cuidadores, a violência nas relações íntimas e o fracasso do Estado na proteção de mulheres, crianças e pessoas trans* e queer. Celebramos as ‘ladybirds’ dos nossos tempos como lembretes constantes de que a precariedade que o Estado possibilita e a violência de género se encontram mais disseminadas e extremadas do que nunca, mesmo nas nações mais ricas do Norte Global. Uma coincidência não tão feliz, se não mesmo uma constante.
Poucos realizadores estão tão empenhados em trazer estas duras realidades para o ecrã como Ken Loach, expondo os fracassos da assistência social e do cuidado institucional que, embora aparentemente enraizados na Grã-Bretanha, são identificáveis em qualquer país apanhado no círculo vicioso do capitalismo neoliberal. Muito antes do aclamado I, Daniel Blake (2016), em que o protagonista se vê enredado num impasse burocrático para a obtenção do subsídio de desemprego, Ladybird, Ladybird foca-se no sistema de proteção de menores e apresenta-se como um dos retratos mais contundentes de Loach sobre os serviços sociais, que sistematicamente prejudicam marginais negligenciados, reproduzem vestígios de humanos e inventam mães monstruosas. Este docudrama interseccional, baseado em acontecimentos reais, aborda múltiplos eixos de poder e dominação que incluem género, classe, raça, nacionalidade, estatuto do imigrante, condições de saúde mental e pontos de vista políticos, cimentados pelo vigilantismo da comunidade.
Em Ladybird, Ladybird, seguimos Maggie Conlan (a brilhante Crissy Rock), uma mãe solteira com cerca de 30 anos de Liverpool, espirituosa, barulhenta e enfurecida, que luta contra a perda da custódia dos seus quatro filhos, retirados pelos serviços sociais sob o pretexto de os colocar num “lugar seguro”. A história começa quando Jorge (Vladimir Vega), um refugiado político peruano, conhece Maggie num bar de karaoke. Rapidamente, a ligação entre ambos evolui para um romance, à medida que estes dois corações feridos se unem através das suas mágoas. Através dos flashbacks de Maggie, ficamos a conhecer a sua educação tumultuosa numa casa de classe baixa marcada pela violência doméstica e o abuso sexual, e a sua busca por amor, que se traduz em quatro filhos de quatro pais diferentes, e um parceiro abusivo ao qual escapa por pouco. Numa noite trágica, deixa os filhos num abrigo para mulheres, onde deflagra um incêndio que queima gravemente um dos seus pequeninos, que é então colocado num lar de acolhimento. Sem outro lugar para onde ir, Maggie procura refúgio no seu ex-parceiro abusivo, até que um outro episódio violento impele os serviços sociais a levarem os outros filhos. À medida que a narrativa se desenrola, a desconfiança das assistentes sociais em relação a Maggie, tida como uma mãe agressiva, submissa e incapaz, torna-se uma profecia que se vai cumprindo, dado que quanto mais a escrutinam, mais a sua paciência se esgota e o seu temperamento fá-la explodir. O presente é moldado pelas sombras do passado, apesar da sua relação não abusiva com Jorge. No entanto, também Jorge é considerado incapaz pelo Estado, visto através das lentes da violência militante ligada à sua pátria. Apesar de garantir a Maggie que podem construir uma nova vida, as suas duas filhas recém-nascidas também lhes são arrancadas dos braços sob a fria vigilância das autoridades do Estado. Este incidente ilustra como as tentativas do Estado para proteger as crianças da violência muitas vezes se manifestam como “uma proteção que é uma violência”, sobretudo em relação àqueles considerados “indignos” de assistência pública. [1]
Não surpreende que Ladybird, Ladybird tenha suscitado polémica na sua estreia. Enquanto alguns consideraram a obra como uma crítica dolorosamente direta ao Estado-providência britânico, outros criticaram Loach por cair em demagogia e manipular as emoções do público ao retratar nitidamente cenas insuportáveis, como separar bebés dos pais na maternidade. Outros ficaram menos satisfeitos com o facto de Maggie ser retratada como uma anti-heroína, no sentido em que a sua atitude agressiva, pouco cooperativa e, por vezes, violenta em relação às assistentes sociais e ao seu companheiro Jorge, pode ser vista como contraditória. Mas é precisamente isso que Loach pretende transmitir com o seu realismo: sim, Maggie não procura a nossa compreensão, não justifica as suas ações nem as coloca num pedestal moral. Está zangada e recusa-se a ser apaziguada ou a fazer cedências. Está zangada com a hipocrisia do heteropatriarcado, que protege agressores, violadores e ricos às custas de mulheres e crianças. Está zangada com um sistema que a reduz ao pior de si. Não tolera o facto de, ao invés de lhe oferecerem uma solução a longo prazo, a tentarem "reabilitar" e fazê-la “aguentar-se” num círculo vicioso de “policiamento brando” disfarçado de “proteção do bem-estar infantil”. [2] O Estado falha com ela, o mesmo Estado que abandona mulheres com baixos rendimentos como ela para “negociar com instituições hostis para que fiquem com os seus filhos”, considerando-as descartáveis. [3] Ela apela, de forma adequada e furiosa, a uma solução estrutural: “Se me querem ajudar, arranjem-me um apartamento, não me enfiem num albergue!” Poderia ter acrescentado: “Comecem por encontrar os quatro pais ausentes, que deveriam ser igualmente responsabilizados.”
Loach não vai tão longe, mas deixa-nos com um sentimento agridoce após os comentários finais que nos dizem que “Maggie e Jorge tiveram mais três crianças que puderam manter. Não lhes foi dado acesso às suas primeiras duas filhas.” Parecem agarrar-se ao amor e à esperança, aos desejos iniciais de Jorge, e tal como a música que Maggie canta no início do filme, no karaoke:
“Just remember in the winter
Far beneath the bitter snows
Lies the seed that with the sun’s love
In the spring becomes the rose”
[1] Vergès, Françoise. 2020. A Feminist Theory of Violence. Londres: Pluto Press.
[2] Kaba, Mariam. 2021. We Do This ‘Til We Free Us: Abolitionist Organizing and Transforming Justice. Chicago: Haymarket Books.
[3] Levine, Judith e Erica Meiners. 2020. The Feminist and the Sex Offender. Londres: Verso.
Ece Canlı
Ece Canlı é uma investigadora, artista e música cujo trabalho cruza regimes materiais, políticas do corpo e performatividade. É doutorada em Design pela Universidade do Porto e é atualmente investigadora no CECS da Universidade do Minho, onde investiga as condições espaciais, materiais e tecnológicas do sistema de justiça criminal, o encarceramento queer, o design penal e o feminismo da abolição. Como artista, emprega técnicas vocais estendidas e eletrónica para criar som para performances encenadas, exposições e filmes, tanto em colaboração como a solo.
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