La permission, Melvin van Peebles
Marcos Cruz
4 de Fevereiro de 2023

O cinema negro a gostar dele próprio


Recuperar La permission, o filme em que Melvin Van Peebles encontra a sua voz como realizador, é obra de garimpeiro, porque implica mergulhar a mão na história suja do racismo norte-americano e retirar de lá, para a luz do dia, uma pepita de ouro, talvez a pedra basilar do chamado cinema negro, uma vez que nunca antes a sétima arte nos havia confrontado tão claramente com a necessidade de a negritude ser auto- representada, em vez de encaixar nos moldes que o poder branco lhe destinava. Melvin foi o abre- latas, literalmente, de muito cinema de genuína e orgulhosa expressão afro- americana que lhe sucedeu. Nomes como Spike Lee, que todos conhecemos, têm essa dívida de gratidão para com o homem que abriu caminho à Blaxploitation e pôs o cinema negro a olhar-se ao espelho.

Não é, aliás, por acaso que uma das primeiras cenas deste filme coloca Turner, o soldado negro norte-americano que obtém do capitão, como prova de “confiança”, uma licença de três dias em Paris, a falar com a sua imagem reflectida. Há um ímpeto de verdade, de não submissão, a crescer no realizador, e La permission é o momento em que ele expõe, a preto e branco, a urgência de a personagem negra assumir protagonismo de forma orgulhosa, imponente, distinta. Não se trata já de reclamar um plano de igualdade baseado no argumento tímido e mimetizante de que somos todos seres humanos, mas de afirmar garbosamente características culturais e de estilo que a sociedade dominante e o cinema americano em particular sempre menosprezaram. A liberdade de Turner dura três dias, e são esses os dias do cinema que Melvin se permite também libertar, destilando humor, classe, frescura, paixão, ironia e ginga, com muita e boa música, como quem estende a mão ao espectador para uma dança nova, de léxico desconhecido.

O ritmo do filme propõe- nos exactamente isso, um encaixe de passos entre o soldado e a realidade com que se depara, seja a cidade de Paris seja a mulher que lá descobre, Miriam, uma empregada de loja por quem se encanta num bar nocturno. A cada passo há uma descoberta, uma via para a fluidez desejada, e é da desconexão entre o desejo, ou a fantasia, e os factos da vida, premissa da dificuldade em impor uma estética negra ao cinema, que surge, paradoxalmente ou não, uma cena memorável, icónica, histórica, só ainda desconhecida da generalidade dos espectadores porque o cinema, ao contrário de Turner, tarda em perceber a necessidade de se olhar ao espelho, sem preconceitos. Mal entrado no dito bar, de óculos escuros, o soldado levita majestático por entre a multidão rendida, cristalizada, até ao lugar em que uma mulher sentada tem o desplante de lhe negar uma dança. Turner põe os pés no chão, mas não só os pés — também os óculos escuros lhe caem. E é nesse momento que a vida se abre para ele, a visão e a vida, nada de disfarces, a verdade começa e o destino sorri. Fica expresso o alerta de Melvin Van Peebles para que não haja passos maiores do que as pernas na afirmação do seu protagonista: ele apreende o entorno à medida que se instala. E fá-lo com uma candura quase pueril, como nos diálogos iniciais entre Turner e Miriam, cada um perguntando coisas ao outro ora em francês ora em inglês. Mas até por aí passa uma já antes denunciada demanda lasciva, duas línguas a tocarem-se, humedecendo os tecidos do filme para o que virá depois: uma das primeiras cenas de sexo inter-racial da história do cinema, corpo escuro em corpo claro num encaixe perfeito, metáfora de uma mundividência ainda pouco transmissível. A pele do soldado norte-americano é um argumento estético e erótico que Van Peebles usa, e bem, com particular despudor, dentro dos limites estreitos que a moral e o racismo lhe concedem. Talvez esteja aí, de resto, uma das principais virtudes deste filme, enquanto big bang de um cinema negro que não pede licença para se mostrar como é: a proposta e a capacidade de mudar o sistema por dentro (mesmo tendo sido realizado fora, em Paris, e sob clara influência da Nouvelle Vague — Hollywood só depois abriu as portas ao cineasta). Com uma equipa pequena e meios modestos, Melvin Van Peebles impôs a sua marca: câmara portátil, montagem lúdica, energia vibrante, humor inteligente, consciência social, inconformismo, simplicidade narrativa e carradas de estilo. Espero que o desenterrar deste filme, um pouco por todo o lado, lhe restitua o lugar na história a que tem direito.

O autor escreve segundo a antiga norma ortográfica.

Marcos Cruz

Licenciado em Comunicação Social pela Escola Superior de Jornalismo do Porto, integrou a redação do Diário de Notícias durante 16 anos, a maior parte dos quais como responsável pela secção de Cultura da delegação Norte. Colaborou com os jornais Correio da Manhã e Norte Desportivo e fez crítica de teatro, música e cinema, tendo sido júri em vários festivais de cinema do país. É autor do livro Os pés pelas mãos (Coolbooks, 2018). Atualmente, é copywriter na Casa da Música e organiza e modera um ciclo de debates no Coliseu do Porto.

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