Segunda longa-metragem da cineasta suíço-argentina Milagros Mumenthaler, depois da premiada Abrir puertas y ventanas (2011), La idea de un lago inspira-se na obra texto-visual auto-biográfica Pozo de aire (2009), da poeta e escritora Guadalupe Gaona. Se o livro de Gaona explora a ausência da figura do pai, desaparecido no contexto da ditadura cívico-militar argentina (1976-1983[1]), La idea de un lago leva a cabo um complexo processo de transposição — mais do que de adaptação — cinematográfica, já que a própria Mumenthaler é filha de exilados políticos na Suíça, país onde viveu antes de regressar a Buenos Aires aos 19 anos para ali estudar cinema. Além do encadeamento de memórias e vivências subjectivas — bem como da própria memória colectiva da ditadura cívico-militar —, La idea de un lago coloca em tensão, tal como Pozo de aire, textos — incluindo excertos do livro de Gaona lidos em frente à câmara, mecanismo brechtiano — e imagens. Mas o filme desprende-se e desune-se do texto de base de Gaona ao ficcionalizar — entre a reconstituição, a efabulação e a mimetização da estética do home movie em Super 8 e VHS (a fabricação de “falsas” imagens de arquivo familiares) — os eventos auto-biográficos narrados. Esse jogo duplo — jogo das bifurcações da escrita, jogo dos sistemas de representação — faz de La idea de un lago um objecto singular no quadro dos filmes sobre a ditadura — e, em particular, entre os filmes de segunda geração, realizados pelos filhos de desaparecidos —, que configuram todo um género cinematográfico na Argentina, tal como noutros países do Cone Sul, como o Chile.
A transposição cinematográfica da trajectória de Inés (Carla Crespo e Malena Moiron), fotógrafa de 35 anos, que, assombrada pela desaparição do pai em 1977 e à espera de um filho, decide contactar a Equipa Argentina de Antropologia Forense, desenrola-se sobre o pano de fundo da história geral, da história do cinema da Argentina e das suas dinâmicas histórico-políticas e formais. Se as práticas repressivas da ditadura, sustentadas na desaparição como modus operandi[2], foram descritas por Rodolfo Walsh na sua Carta abierta de un escritor a la Junta Militar, como “tortura absoluta, intemporal e metafísica”[3], para Claudio Martyniuk, persistem até hoje os traços da violência de Estado: “Desgarrados, pulverizados, destruídos entre si. A sociedade, um espectro. O País, escombros”[4]. As representações cinematográficas da ditadura caracterizam-se historicamente pela transição dos filmes de denúncia militante a diferentes modalidades de rememoração fílmica e a procedimentos estruturais e metódicos de análise discursiva. Se Los Rubios (2003), de Albertina Carri, e 17 Monumentos (2012), de Jonathan Perel, transgridem formal e epistemologicamente os pressupostos e convenções do cinema sobre a história e a memória da ditadura — através das suas rupturas formais, mas também do questionamento da “sacralização”[5] da figura do desaparecido e da política memorialística do Estado respectivamente —, La idea de un lago é também um filme transgressor, não tanto pela passagem para o sistema de representação da ficção, já ensaiada em obras precedentes, mas pelo tratamento da dialéctica da ausência e da presença através de uma estética sensorial, evocativa e semi-figurativa, atravessada pela tensão entre campo e fora de campo.
O desenredar mediado e indirecto da memória da ditadura e o “desembruxar”[6] da figura do desaparecido apresentam-se, desde logo, linguisticamente, no título do filme. Mumenthaler trabalha a ideia de um “lago”, operando meta-lingusticamente o hiato entre o uso e a menção do vocábulo. Se o lago da infância é aqui dotado de uma força animista (atente-se no processo de construção e activação do seu ponto de vista perceptivo, nas sequências em que Inés, criança, é observada pelas águas em movimento), a dimensão meta-linguística, bem como o sistema dialógico do filme, instauram uma tensão entre perspectivas enunciativas. Se a “ideia de um lago” aponta para uma posição enunciativa precisa (uma perspectiva determinada sobre o lago, perceptiva e/ou cognitiva), o sistema dialógico (o diálogo entre instâncias discursivas) coloca-a em crise e em deriva, potenciando-se assim o processo de descristalização de uma memória múltipla (e não só singular).
Essa descristalização da memória, também assente numa dinâmica de espacialização de múltiplas camadas narrativas e históricas, põe, em paralelo, a história — a narrativa do filme, mas também a história geral e o próprio cânone cinematográfico — em movimento.
Operando, na linha do cinema argentino contemporâneo e da filmografia de cineastas como Lucrecia Martel e Matías Piñeiro, sobre uma política da intimidade, La idea de un lago adopta uma estética depurada e sóbria (uma recusa quase sistemática dos primeiros planos), pontuada por sequências musicalizadas em que se desfaz a ruptura entre a esfera material e a esfera onírica, centrada no núcleo familiar de Inés, nas figuras da mãe e do irmão e nas relações que se tecem e destecem entre esse triângulo em diferentes espaços-tempos (Buenos Aires e La Angostura, no Sul da Argentina; as várias camadas temporais, que culminam no antepenúltimo plano do filme, plano indeterminado temporalmente, analéptico ou proléptico, salto para o passado ou para o futuro). A ausência-presença do pai delineia-se, entre a alusão e a figuração na única fotografia de Inés com o progenitor, ampliada e perscrutada no computador da fotógrafa, colocando-se assim em tensão a memória vivida e a memória tecnológica, através do percurso por esses topoï da memória, dos espaços metonímicos, dos silêncios e não-ditos. Filme hantológico[7], composto a partir de traços que vêm do passado, La idea de un lago faz da desaparição e dos seus meandros um fora de campo, evocado, convocado, espectralizando semi-figurativa e sensorialmente o espaço da representação. A sequência nocturna em que as crianças jogam às escondidas e em que se estabelece um intricado jogo de olhares entre a perspectiva da câmara e a perspectiva de Inés criança, recordando El espíritu de la colmena (1973), de Víctor Erice, epitomiza essa dinâmica. Do escuro e do vazio, lugares da memória e da imagem que contrariam a sua lógica assertiva, advém o encontro e o confronto com os espectros do passado e a possibilidade de negociação do futuro.
A autora escreve segundo a antiga norma ortográfica.
¹ A ditadura cívico-militar iniciada em 1976 não foi um sistema político repressivo isolado, mas
resultante de uma sucessão de intervenções militares, que incluem, entre 1966 e 1970, a ditadura
de Juan Carlos Onganía.
² Estima-se que cerca de 30 mil pessoas foram torturadas e desaparecidas no contexto da
ditadura de 1976–1983.
³ Walsh, Rodolfo, “Carta abierta de un escritor a la Junta Militar”. Serie Recursos para el Aula,
Archivo Nacional de la Memoria, pp. 8–13. Disponível em http://conti.derhuman.jus.gov.ar/_pdf/
serie_1_walsh.pdf (consultado a 17 de Julho de 2023), tradução da autora (todas as traduções
são da autora).
⁴ Martyniuk, Claudio. Esma: fenomenología de la desaparición. Buenos Aires: Prometeo, 2016, p. 47.
⁵ Id., p. 55
⁶ Ibid..
⁷ Derrida, Jacques. Spectres de Marx. L’état de la dette, le travail du deuil et la nouvelle
Internationale. Paris: Galilée, 1993.
Raquel Schefer
Investigadora, realizadora, programadora e professora associada na Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris), Raquel Schefer é doutorada em Estudos Cinematográficos pela mesma instituição — com uma tese dedicada ao cinema revolucionário moçambicano — e mestre em Cinema Documental pela Universidad del Cine (Argentina). É autora do livro El Autorretrato en el Documental (Ediciones Universidad del Cine, 2008). Foi professora em diferentes universidades em França, em Espanha, na Argentina e no México e investigadora convidada na UCLA. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT. É coeditora da revista de teoria e história do cinema La Furia Umana.
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