Ôrí, Raquel Gerber
Ellen Lima Wassu
3 de Setembro de 2023

“É preciso a imagem para recuperar a identidade. Tem-se que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos.”. Com essas e outras grandiosas reflexões narradas, Beatriz Nascimento trança com Raquel Gerber em Ôrí uma poética singular que tem como chave o diálogo ativo entre duas práticas que no conhecimento ocidental são aparentemente inconciliáveis: ancestralidade e política. Entretanto, é justamente entre o sagrado ancestral, as práticas de religiões de matrizes afro-brasileiras e a organização intelectual e política dos chamados movimentos negros no Brasil na década de 1970, que as questões sobre identidade, corpo e cultura de um continente em diáspora emergem.

Não por acaso Ôrí, termo de origem Iorubá que, entre outros sentidos verificados na cultura afro-brasileira, significa “cabeça”, repercute tantos atravessamentos na obra. “Fazer a cabeça” para os praticantes do candomblé diz respeito a iniciação. Na cultura popular brasileira, pela influência direta da cultura negra, “fazer a cabeça” de alguém significa influenciar na tomada de decisões. Decido conscientemente negar o emprego negativo que a expressão, em função do racismo, também carrega, para enaltecer alguns sentidos de sua origem: essência, intuição e força. O filme apresenta essa dimensão de iniciação e influência na colaboração entre ambas as tradições: ancestral e política. O conceito de quilombo que Beatriz Nascimento apresenta articulado com a busca identitária é o fio condutor dos fundamentos de reapropriação dessas imagens. Assim como — e por consequência — as lutas de libertação do povo negro, “fazendo a cabeça” de uma juventude a estabelecer seu território, recuperar o conhecimento da terra e retomar a identidade.

A ideia de transmigração, em contexto afrodiaspórico associado ao quilombo, evoca uma consciência de reinvenção e resistência de culturas que se encontravam no exílio, no “não lugar” do deslocamento de um continente para outro, no eminente “desaparecimento de sua imagem”. Do mesmo modo, Beatriz reabilita a figura de Zumbi como o herói civilizador da cultura negra. Uma espécie de guia para uma história circular que orienta passado-presente-futuro, inspira e desperta consciências estabelecendo novos sentidos de nação. Em suas formulações sobre os impactos psíquicos da experiência do racismo, o intelectual martinicano Franz Fanon nos lembra que na divisão e hierarquização das “humanidades” impostas pela situação colonial há uma “zona de não ser”, em suas palavras, “uma zona extraordinariamente estéril e árida, um declive essencialmente despojado, onde uma autêntica explosão pode ter origem”. Uma explosão se apresenta em Ôrí de forma fascinante como um reposicionamento da imagem do negro. Desde a organização política ao reconhecimento da estética manifesta na beleza dos rituais sagrados e cotidianos. Nas mobilizações, nas escolas de samba, nos terreiros, nas festas, nas múltiplas expressões de celebração e organização da resistência cultural e política de nações fundadas na diáspora, na dialética com o Atlântico.

Beatriz Nascimento é a voz narradora, espectadora e protagonista de seu tempo. Uma intelectual que emerge da militância do movimento negro e que, também através da busca e recuperação da própria imagem diaspórica, fez contribuições singulares para o pensamento social brasileiro. Quando afirma ser “Atlântica”, Beatriz assume que seu corpo é o elo de ligação da história fragmentada de uma civilização e “de um modo de estar no mundo” que foi “transportado” de um continente para outro. O movimento de recuperar a imagem de uma nação transatlântica não diminui, segundo ela própria, a dor do corpo histórico, mas recupera e defende a identidade, as subjetividades e as organizações sociais e políticas. 

Os complexos caminhos da memória do corpo em diáspora são indissociáveis do pensamento e da organização política de sua época. Ôrí associa reflexões e exercícios de decolonização visual e epistêmica, contrariando os discursos hegemonicamente estabelecidos sobre a população negra no Brasil. Através dessas experiências, cultura e identidade vão assentando-se no continente, ressignificando-se, reaparecendo em cores, sons e palavras que retratam a experiência da “revelação” de uma imagem aparentemente perdida no exílio. Através de uma estética que se coloca nas fronteiras de lugares que fundam e refundam identidades e pertencimento, Beatriz Nascimento e Raquel Gerber parecem nos sugerir que quilombo, ancestralidade e organização política são Ôrí, a cabeça.

No movimento das histórias fundadas no Atlântico, uma das chaves de leitura do filme é uma afirmação que perpassa toda a narrativa: o movimento é dialético e a dialética se encontra na mais profunda e intensa força direcionadora, no mar.

Ellen Lima Wassu

Ellen Lima Wassu é poeta, ativista e investigadora indígena. É Mestra em Artes e Doutoranda em Modernidades Comparadas: Literaturas, Artes e Culturas na Universidade do Minho. Publicou em 2021 Ixé ygara voltando pra ’y’kûa, livro de poesias escrito em língua portuguesa e tupi antigo e tem textos publicados em diversas revistas literárias e antologias. Atua nas áreas de arte, cultura e literatura e sua prática relaciona poesia, performance, estudos contracoloniais e escritas ensaísticas.

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