John & Jane, Ashim Ahluwalia
Jemma Desai
7 de Janeiro de 2023

Notas sobre a Quarta Dimensão


I

Mark Fisher escreve que “O Capital é um parasita abstrato, um vampiro insaciável e fabricante de zombies; mas a carne viva que converte em trabalho morto é a nossa, e os zombies que gera somos nós.” Na Quarta Dimensão, um call centre em Bombaim, os trabalhadores são identificados pelos seus números, o seu tipo sanguíneo, e vigiados e recompensados dependendo da sua capacidade de se transformarem em coercivos ou prestáveis, dependendo do guião que lhes foi passado. Ensinados a imitar John e Jane Does, que são simultaneamente cadáveres impossíveis de identificar e também homens e mulheres americanos comuns, o seu trabalho é controlar e extrair os registos emocionais do órgão que bombeia sangue e nutrientes pelos seus corpos, a fim de cultivar o florescimento do organismo que é o negócio do call centre.

Na Quarta Dimensão, a vida autêntica não é tão importante como a sua replicação, pelo que John & Jane é um filme sem verdade e sem mentiras. A sua forma rima com o documentário híbrido, mas não é nem ficção nem fato. John & Jane é uma obra de fato/ficção especulativa.

A palavra especulativa partilha a sua linhagem com a raiz specere, em Latim, que significa “olhar para”, que ela própria deve as suas origens à raiz proto-indo-europeia spek, que significa “observar”. As relações incluem o sânscrito spasati “vê”, o avéstico spasyeiti “espia”, o grego skopein “contemplar, observar, considerar”, o skeptesthai “olhar para” e o spehhon, que significa “espiar”.

Implicado neste desvio etimológico encontra-se o artefacto cultural do filme, o próprio cineasta, o criador do espetáculo e o realizador do espetáculo. O sonho americano enquanto cultura e imperialismo — como contido nas suas modas, música e filmes, em todas as suas formas, fragmentadas e unidas, é o espaço liminar na Quarta Dimensão. Permeia os sons, os gestos e as atmosferas contidas no seu interior. As referências culturais mudam e alteram-se ao longo do filme, mas o seu poder de entrar nos corpos, através da ingestão, da recitação, e da transformação física é constante.


II


Na Quarta Dimensão, não existem passaportes ou vistos, mas existe um sistema de entrada para um “eu verdadeiro”. Aparentemente, isto depende de se dar e de se receber um nome, mas materialmente é através da gestão da sensação física. No seu livro “The Managed Heart: Commercialization of Human Feeling”, Arlie Rothschild pergunta o que acontece quando “um sistema emocional privado foi subordinado a uma lógica comercial”. Em John & Jane, vemos corpos diferentes a representar este sentimento humano mercantilizado para vender seguros, subscrições de revistas, cursos e para resolver (ou não resolver) os problemas dos clientes. Distorcendo os seus sentimentos, mobilizam uma representação da sinceridade ao serviço não da conexão, mas da etiqueta extrativista.

No filme, os nomes atribuídos à nascença são eliminados e novos nomes são dados naturalmente: o mito da transformação pessoal e da liberdade de movimentos começa através das fantasias incorporadas nos seus nomes ocidentalizados e porosos, como Nicky, Naomi, e Glen. Nomear, na Quarta Dimensão, como na retórica esforçada da diáspora conservadora Hindu que irá, um dia, formar uma elite tecnológica, é uma tecnologia a favor e contra a assimilação, a favor e contra o nacionalismo. Nomear e renomear na quarta Dimensão é apresentado como a liberdade de possuir uma identidade individualizada, em que qualquer pessoa pode ser qualquer coisa. Ainda assim, fora do confinamento da Quarta Dimensão a sombra dos seus nomes originais paira: mantem-nos presos à classe, casta e relação social hierárquica.

Os nomes, como as fronteiras, têm histórias que são sólidas. Com que nome (ou passaporte ou visto) começamos pode fixar onde cada fantasia especulativa pode começar e até onde é provável que vá. Glen, um jovem bonito aparentemente confortável, revira os olhos durante as suas chamadas e queixas sobre a falta de benefícios enquanto sonha com uma carreira de modelo pela Versace — a concretização do seu “verdadeiro” eu. Osmond, cuja confiança no sistema é menos baseada na escolha e mais no desespero, deve assumir completamente a fantasia que lhe é oferecida pela Quarta Dimensão. Incapaz de esgrimir um gesto insultuoso e assumir o que quer, deve transmutar-se num “homem [de negócios] de princípios” com todo o seu ser: para ele, não resta nenhum eu, verdadeiro ou falso.


III

A especulação é um ato de imaginação, mas também se encontra enraizada no material. Em economia (o realismo capitalista que rima com materialismo) a especulação, ou a transação especulativa, refere-se ao ato de conduzir uma transação financeira que comporta um risco substancial de perda de valor, mas que também mantém a expetativa de um ganho significativo ou outro valor importante. Em ambos os sentidos da ideia, é preciso imaginar algo diferente daquilo que existe. Em ambos os sentidos da ideia, um ato de imaginação não é como o outro.

No seu ensaio sobre Afrofuturismo, Mark Dery pergunta “Pode uma comunidade cujo passado tem sido deliberadamente apagado, e cujas energias têm sido posteriormente consumidas pela busca de vestígios legíveis da sua história, imaginar futuros possíveis?” Em John & Jane, emerge outra questão sobre futuridade e tempo. Poderá uma comunidade cujo passado foi minado e explorado, um passado que lhe foi revendido pela obtenção de lucro e uma promessa de um futuro diferente, participar nesta transição e habitar plenamente o presente?


IV

A Quarta Dimensão atua como um recipiente para a espiritualidade neoliberal. Em contraste com o guru das celebridades, ou os professores de negócios que se encontra nas cassetes que os trabalhadores passam e que lhes são passadas, na Quarta Dimensão esta espiritualidade recebe um brilho feminino e maternal, alinhando o materialismo através do ascetismo e ética de trabalho reverencial com o orgulho familiar, o dever e a linhagem. Em John & Jane, as mulheres utilizam uma abordagem altamente individualizada na incorporação de valores para ensinar a arte da especulação. As suas línguas mostram como chegar aos sons no fundo da boca no sentido de se relacionarem com os outros “autenticamente” (“é eaaaaaaa”) e a sua orientação conduz grupos pela cadeia de valores das suas novas identidades. (“Lembram-se de como fizemos indivíduo, família, comunidade, nação? Subjacente a estes temas estava a escassez versus a abundância”).

São as mulheres que navegam pelos detritos emocionais de atos de especulação enraizados na transação ao invés enraizados na abertura. Ao contrário dos trabalhadores masculinos e narcisistas que assumem o papel do profissionalismo de forma a acumular e providenciar, Nikki e Naomi tornam-se altruístas afetivas, minando as profundezas das suas vulnerabilidades mais íntimas, a fim de proteger a ideia de que o imperialismo americano pode ser compatível com o grupo e o seu bem-estar. Espiritualmente vazias e sozinhas, são-lhes vendidos ecos da sua cultura de origem recondicionados pela via do comércio, para que sintam que pertencem à sua nova cultura. A quarta dimensão oferece-lhes soluções “new age” de rosto branco, opções de “bem-estar” e “beleza” extraídas por exploradores que exploram as suas culturas para se “autor-realizarem” e desbloquearem o seu potencial escondido. Estas áreas mais suaves da Quarta Dimensão parecem mimetizar um “terceiro espaço” — os meios sociais que se encontram separados dos dois ambientes sociais habituais da casa (“primeiro lugar”) e do trabalho (“segundo lugar”), mas que na realidade funcionam para fazer desaparecer todos os vestígios disso. Se a Índia simboliza um lugar para um mano da tecnologia, cansado, se retirar do trabalho para se encontrar, a visão que devolve ao trabalhador nativo explorado é a de que é permanecendo sempre no trabalho que vão encontrar os seus verdadeiros eus.



V

O conceito da Quarta Dimensão refere-se a universos paralelos ou alternativos ou outros planos de existência imaginados. Em John & Jane, a evocação deste conceito é um truque que troca a diferença pela semelhança. Aqui novamente o apagamento de um outro Terceiro Espaço, aquele que Homi Bhabha conceptualizou “que dá origem a algo diferente, algo novo e irreconhecível, uma nova era área de negociação de significado e representação.” Não existe espaço “intermediário” onde o hibridismo possa ser formulado, reformulado, e tornar-se outra coisa. Aqui não há simultaneidade, apenas os binários da diferença e da semelhança. A Quarta Dimensão é um lugar de feitiçaria geométrica que reordena a forma e a disposição relativa da autonomia corporal. Recondiciona a subjugação como liberdade, a assimilação como escolha individual. A Quarta Dimensão sugere um espaço transcendental onde as fronteiras foram dissolvidas, contudo para ganhar pleno acesso a estas novas extensões, os habitantes devem localizar-se como aderentes às limitações da ortodoxia: de forma a ganhar máximo valor do sonho americano devem interiorizar o seu imaginário.

A Quarta Dimensão é, na melhor das hipóteses, ambivalente sobre o hibridismo; sobre a inter-relação das preocupações humanas. A sua verdadeira moeda de troca é o mimetismo unilateral e a replicação. A Quarta Dimensão (o Imperialismo americano) arranca o pós do pós-colonialismo e afasta-se da questão da continuidade da nossa chegada lá. No vazio emocional da Quarta Dimensão, a questão permanece ainda que nunca seja colocada: qual é o formato e a forma das histórias de todo o querer e o desejo que nos conduziram até aqui, e onde está a memória das histórias que nos conduzirão para longe?

Jemma Desai

Doutoranda na Central School of Speech and Drama (Londres), presentemente a pensar através de ideias de liberdade em imagens em movimento e performance, Jemma Desai relaciona-se com programação de cinema através da pesquisa, da escrita, da performance e da pedagogia. Trabalhou por toda a indústria cinematográfica, em lugares como Berwick Film & Media Arts Festival, Blackstar Film Festival, BFI e British Council, e baseia a sua investigação nestas experiências, encontrando formas de refletir sobre como o imperialismo se replica através de processos de trabalho institucionalizados, afetando as várias maneiras como nos relacionamos através da arte.

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