Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles
É difícil saber como escrever sobre Jeanne Dielman, de Chantal Akerman. Mesmo antes de ter sido votado “o melhor filme de todos os tempos” na mais recente sondagem a críticos da Sight and Sound — a primeira vez, em 70 anos, que a votação foi encabeçada por um filme realizado por uma mulher — havia algo de preconcebido em Jeanne Dielman. No seu tempo, o filme gerou um sem número de comentários. Acumulam-se na sua superfície como sedimentos no fundo de um lago. Como tal, raramente se assiste a Jeanne Dielman sem presciência ou expetativa. Chega acompanhado pelas suas míticas circunstâncias de produção — uma realizadora de 25 anos, uns meros 120 000 dólares provenientes de uma bolsa atribuída pelo Estado, uma receção contraditória e controversa — e as interpretações feministas (apesar de a própria Akerman desconfiar do termo) por parte de académicos e críticos ao longo de décadas, que ajudaram a consolidar a reputação do filme. Poucos filmes foram descritos tão exaustivamente, ainda que em traços tão gerais. Poucos filmes foram tão importantes para tantas pessoas de formas tão diferentes.
Então como falar sobre Jeanne Dielman? Talvez recuando ao básico, tentando imaginar aquele primeiro visionamento relativamente desobstruído. É famosa a debandada de público que saiu da sala quando o filme foi exibido pela primeira vez na Quinzena dos Realizadores, em Cannes. Continua a ser fácil compreender o porquê. Com três horas e meia, com o seu escrutínio implacável da rotina doméstica de uma mulher, Jeanne Dielman é um exercício de resistência, uma guerra de atrito. Possui uma honestidade duracional decidida a exigir um esforço da sua audiência, para nos forçar a sentir o mesmo desespero monótono e mecânico da sua protagonista. Acima de tudo, o filme evoca uma espécie de horror sem nome. Uma mãe viúva limpa, cozinha, janta com o seu filho, e à tarde tem sexo com homens anónimos a troco de dinheiro. Seguimos a sua rotina durante três dias através de uma série de takes longos e impiedosos, até à conclusão chocante do terceiro.
Algumas conversas forçadas com o seu filho revelam fragmentos do seu passado: um marido que costumava ler bastante, um início de vida a viver com tias. Conta ao seu filho que se casou porque queria ter a sua própria vida — e conseguimos ver que a tem. O que fica esquecido em tantas descrições do filme, e nas memórias predominantes que os espectadores têm dele (a confeção de um rolo de carne, o descascar das batatas, fazer o café, aquilo a que Ivone Margulies chamou de “quotidiano hiper-realista” da obra), são estes estranhos momentos de interação e as reações, ou não reações, instantâneas de Jeanne Dielman aos mesmos. “Não vale a pena falarmos sobre estas coisas”, diz Jeanne Dielman ao filho, quando ele começa a contar à sua mãe aquilo que sabe sobre sexo e que, assim que descobriu o que acontece entre mães e pais, “odiou o pai durante meses” e “quis morrer”. O monólogo do filho está impregnado de potencial psicanalítico. A mãe acaba com a conversa. Momentos impregnados do humor barroco típico de Akerman também parecem ficar esquecidos na memória coletiva do filme (o humor a que tantas vezes se faz alusão em relação às outras obras da realizadora parece ser ignorado quando se trata desta séria “obra-prima”).
Quando Jeanne Dielman entra no café do seu bairro pela segunda vez no filme, percebe que o lugar em que se costuma sentar está ocupado. Detém-se por breves instantes para olhar para a usurpadora — uma mulher mais velha que lê o jornal — e ergue o pescoço antes de se sentar na mesa do lado, indiferente. Este momento totaliza menos de dez segundos de filme, mas é um raro momento de alívio interativo. Depois há a vizinha (interpretada pela própria Akerman, mas só ouvimos a sua voz por detrás da porta do apartamento) que entrega o seu bebé para que Jeanne Dielman cuide dele enquanto vai às compras. Jeanne Dielman pousa a alcofa na sua mesa de jantar à semelhança do saco de batatas que comprou umas cenas antes. Porém, por mais que procuremos por pistas, quase nada é revelado sobre o estado mental de Jeanne Dielman. “Não quero nenhuma psicologização da história”, diz Chantal Akerman a Delphine Seyrig em Autour de Jeanne Dielman, um documento da realização do “melhor filme de todos os tempos”, que nos dá a nós, psicologizantes e politizadores à procura de pistas, algo para dissecarmos. Através de um esquecimento coletivo, de uma falta de cobertura destes momentos de humor e conversa mais substanciais, parece que, de alguma forma, Akerman conseguiu o que queria.
Daniella Shreir
Fundadora e coeditora da Another Gaze, revista de cinema e feminismos, e criadora da plataforma de streaming Another Screen, Daniella Shreir trabalha na área da produção cinematográfica e é designer gráfica, fotógrafa e tradutora do francês. A sua tradução de My Mother Laughs, de Chantal Akerman, editada pela Silver Press, foi distinguida com um prémio PEN, em 2019. Atualmente, está a trabalhar na tradução de dois livros e lançará, em conjunto com Missouri Williams, a Another Gaze Editions, nova editora dedicada à escrita sobre cinema feita por mulheres.
Missouri Williams
Coeditora da revista de cinema Another Gaze, Missouri Williams colabora, como cronista e crítica, com meios como The New York Times, The Nation, The Believer, Granta, Five Dials e The Drift. O seu primeiro romance, The Doloriad, foi publicado em 2022 pela Farrar, Straus e Giroux, nos EUA, e pela Dead Ink Books, no Reino Unido. Em conjunto com Daniella Shreir, está atualmente a trabalhar no lançamento da Another Gaze Editions, nova editora dedicada à escrita sobre cinema feita por mulheres.
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