J’ais pas sommeil, Claire Denis
Maria João Castro
18 de Dezembro de 2022

Coreografia de corpos solitários


J’ais pas sommeil (1994) podia ter sido um thriller porque há um serial killer que mata idosas solitárias. E, apesar de Claire Denis se inspirar num caso que horrorizou o bairro parisiense de Montmartre, entre 1984 e 1987, com o assassinato de 21 idosas por um jovem negro e gay, ela recusa a exploração sórdida do tema e os artifícios cinematográficos como o suspense e conduz-nos por outros caminhos. De forma trivial sabemos bastante cedo quem é o assassino, uma das personagens deste filme, uma de várias que vão aparecendo, cruzando-se umas com as outras, mas sem uma conexão coerente. A câmara deambula de uns para outros como se avançasse em pólos magnéticos descentrados. Daiga, a jovem lituana que chega a Paris num carro velho, sem dinheiro, quase sem bagagem, com muitos cigarros e dois números de telefone, em busca do trabalho de actriz que lhe fora prometido. Acaba a fazer limpezas e a viver no hotel de uma amiga da sua tia-avó. Aqui vive também Camille, gay e travesti, com o seu amante branco, ambos mergulhados na subcultura gay da periferia de Paris. Olhamos a seguir para o seu irmão, Théo, músico e operário ilegal, enredado num conflito conjugal, porque quer voltar para a Martinica com o filho e a mulher insiste em ficar. Têm origens, circunstâncias e objectivos diferentes, mas todos se cruzam à medida que constroem uma narrativa cinematográfica singular e original e em que Claire Denis, com a colaboração da fabulosa cinematografia de Agnès Godard, nos envolve em alguns temas e inquietações.

O Outro, o que vive uma alteridade ou uma identidade difusa e em perda. Sem ser panfletário, foca-se as sociedades pós- coloniais, tão diversas devido às várias vagas migratórias. Os protagonistas habitam um bairro miscigenado e periférico e são seres clandestinos ou exilados e, por isso, inventam as suas regras para sobreviverem. Africanos, antilhanos, lituanos e russos, a que se juntam homossexuais, travestis e até idosas solitárias. A cidade é um espaço de alienação, de solidão e de ostracismo onde habitam estes seres apáticos e apátridas.

Mas o Outro tanto provoca rejeição como curiosidade e desejo e daí a importância de uma cinematografia dos corpos e dos gestos, filmados como a coreografia de uma dança. O peso do corpo sobrepõe-se à narrativa e alimenta a belíssima fotografia de Agnès Godard. Há um desejo claro da câmara se apropriar destes corpos que deambulam nas margens da cidade e que, sobretudo, dançam. Uma das imagens mais poéticas é a cena sensual e comovente de Camille, que pouco depois saberemos que é o “monstro”, a dançar e a cantar “Le Lien Défait” no clube nocturno gay. Ele move-se languidamente no seu vestido de veludo preto, descalço, tocando ao de leve as paredes e os outros corpos em redor. E no seu olhar há mistério, opacidade e alheamento. E, também, a dança entre Daiga e Ninon, a dona do hotel, ao som de “Whiter Shade of Pale”, dos Procul Harum, que se traduz num desencontro entre corpos distintos que contam histórias diversas e os gestos de sedução de Ninon, quando recorda a sua juventude que acha espelhada na jovem lituana, não tiram Daiga da sua indiferença. São dois seres solitários. A dança também nos dá uns breves momentos de alegria no contacto entre corpos como a dos casais de velhos migrantes no clube onde Théo toca e na festa de anos da mãe de Camille, em que os filhos dançam felizes com ela e, contudo, há aí também tensão e repulsa entre os irmãos, como se Théo adivinhasse o desfecho que chegará pouco depois. O corpo é matéria de vários sentidos e a base da construção narrativa. As palavras pouco contam porque é o não dito que interessa a Claire Denis. O confronto, o desejo e a repulsa entre a intimidade dos corpos interliga estas histórias disjuntivas. Por último, o olhar amoral da realizadora, sem qualquer juízo valorativo sobre o assassino ou sobre os motivos que o levam a matar. Não existe aqui nem empatia nem repulsa por Camille. Ele é capaz de uma suavidade sedutora e de violência, nunca muito gráfica, sobre o amante e as idosas. Os seus gestos, a dançar, a comer, a amar, são filmados da mesma forma que os gestos a matar. E até ao fim, depois de preso, Camille mantém a apatia e continua a opacidade sobre a sua personalidade. Também o seu irmão segue o caminho indiferente, porque o objectivo é partir para a Martinica. O mesmo acontece em relação a Daiga, que aproveita a prisão de Camille para ficar com o dinheiro roubado e, no seu velho carro, volta a partir, com pouca bagagem, muitos cigarros e agora muito dinheiro.

O modo como Claire Denis dissimula o mal com uma certa atonalidade dramática transforma este filme numa obra-prima simultaneamente poética e negra. Uma aparente simplicidade desconcertante, que acaba por ser um puzzle em que as peças individuais não encaixam, e que nos recusa um lugar confortável e conhecido para nos propor o estranho, a perturbação e a possibilidade de vários sentidos e experiências.

Será uma espécie de filme noir pós-moderno, porque nos transporta para uma realidade urbana periférica, com um fundo criminal que ocorre nas zonas sombrias de uma cidade habitada por falhados, marginais e solitários. Um filme que não nos deixa repousar. Não queremos dormir porque a solidão é o caminho para a morte.

Maria João Castro


Professora da ESMAE, Maria João Castro leciona as cadeiras de História da Cultura, do Teatro e do Cinema, Pensamento Político Contemporâneo, e Cultura e Ideologia. Mestre e doutoranda em História Política Contemporânea pela FLUP, é investigadora do CITCEM nas áreas da História da Cultura e do Pensamento Político Contemporâneo. É deputada na Assembleia da República, e dirigente e autarca do Partido Socialista no Porto. Desde 2020 que integra a Direção da Associação Amigos do Coliseu do Porto, entidade gestora do Coliseu do Porto.

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