Uma ficção científica super provocadora que não deixa ninguém indiferente. A primeira coisa que se nota é que o filme tem muita textura, tudo nele é palpável. O som nos aproxima da imagem e é como se estivéssemos numa realidade virtual. No início, a experiência é quase de viagem ao espaço através do olhar da câmara.
A forma intimista como alguns planos são filmados — os detalhes, os movimentos de câmara lentos, o cenário minimalista, sons tão lentos quanto a câmara — dá uma sensação de transcendência.
É uma ficção científica fora de clichê: a estética minimalista se opõe ao padrão visual de ficção científica, ao mesmo tempo que nos dá a impressão de estarmos presos e condicionados a essa experiência.
Esta obra pode provocar várias questões sobre os limites da humanidade, como é viver sob nossas próprias regras e nossa própria justiça — ou a ausência disso tudo. Pode ser um pouco sufocante para espectadores mais sensíveis, mas uma coisa é certa: não deixa ninguém indiferente.
O minimalismo, a experimentação e a tecnologia se conectam para criar um ambiente de horror/suspense, um horror também no sentido da espetacularidade e de nossos desejos mais absurdos.
É um filme muito sensorial. A imagem e a sonoridade mexem com todos os sentidos, há cenas que são palpáveis, e há outras que podem mesmo dar a sensação de cheiro e por aí além. O filme quebra tabus na sua linguagem, e uma das cenas mais provocadores é a da masturbação feminina, que expõe muita pele — a pele como elemento do espetáculo e da performance que também está presente em outras cenas do filme, o prazer feminino como desejo bárbaro, que ao mesmo tempo coloca a mulher no lugar de autonomia e decisão.
A forma como a sexualidade é retratada torna evidente que é um filme dirigido por mulher, pois está cheia de críticas. Outra questão bastante relevante que acho que o filme traz é a crítica à obrigação da procriação, e a não-liberdade de escolha. A cena, que é uma performance sobre amamentação, é uma crítica evidente à crença sexista e capitalista de que a vagina está lá para servir o útero, e o útero para servir os peitos, e todos esses órgãos para servir o homem. Porém, não estamos diante de um cinema acessível: o filme recorre a muitos códigos, simbolismo — e, se existem momentos em que a margem de interpretação é escassa, far-se-á justiça se o colocarmos à disposição dos sentidos.
A opção pela ruptura com as linhas temporais, dada pela montagem do filme e a tecnologia da ficção científica, cria um puzzle que não é fácil o espectador montar. Assim, resta-nos abrir a mente e deixar que o filme por si só se decifre. Esses pactos visuais que misturam a performance, a instalação e a ficção científica parecem estar feitos para nos baralhar — é um filme que provoca a narrativa tradicional e não está para cumprir as expectativas do espectador. As imagens por si só dão um show de sensações que vão do horror ao conforto.
Lolo Arziki
Cineasta formada em Vídeo e Cinema Documental e com um mestrado em Estética e Estudos Artísticos, Lolo Arkizi realizou, até à data, uma curta-metragem documental, Homestay (2017), premiada em dois festivais, em Portugal e em Cabo Verde, e três vídeo-performances, exibidas em galerias de arte na Europa e no Brasil. Recentemente, após ter denunciado que dois dos seus projetos fílmicos foram alvo de censura em Cabo Verde, Arziki distanciou-se da realização, dando continuidade à sua prática de programação e curadoria em festivais e mostras internacionais de cinema.
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