Luas Novas: Helena Estrela
Helena Estrela filma uma espécie de cinema horizontal. Fora do seu trabalho, nunca vi tantos atores deitados. Vou listar as ocasiões. Vemos primeiro a protagonista misteriosa de Bela Mandil (2018) a dormir, deitada de costas, em terreno rochoso, e assume esta posição mais duas vezes no decorrer do filme, uma vez com as pernas abertas, como se a receber algo, num sonho de ultraviolência, e depois novamente no chão de uma gruta ao lado do seu amante, enquanto os dois dormitam num retângulo de luz. Tanto Transportation Procedures for Lovers (2021) como Sol e Sorte (2022) apresentam mulheres deitadas, geralmente sozinhas, mas por vezes interrompidas. Já em Dreams, a personagem encontra-se deitada de lado com a cabeça no colo de outra mulher que afaga o seu cabelo. Em Carta #6, uma outra mulher atira-se para um sofá. Apenas vemos as suas costas, não o seu rosto. Abundam outras imagens de imobilidade. Quando as personagens de Estrela se movem, fazem-no rigidamente. Se estão de pé, raramente caminham. Se olham, fazem-no oniricamente. Por fim, não falam, declamam. Na maior parte das vezes, falam para si mesmas. Os sujeitos raramente partilham enquadramentos. Os membros são frequentemente separados dos seus corpos e uns dos outros.
O efeito criado é dissociativo, distanciador. Por vezes, parece que o mundo inteiro está, também ele, à beira de adormecer, ou aparenta ter sido já decomposto em fragmentos de um sonho. De todos os filmes de Estrela, Sol e Sorte é o que melhor transmite a violência subjetiva do sonhador. Uma mulher está deitada na relva e observa o sol afundar-se por fases. Os seus olhos fecham-se e vemos anéis prateados a cair por terra, um vivo céu laranja, floresta verde, céu azul, floresta laranja, índigo profundo. A seguir, uma mulher ri enquanto enfia os anéis nos dedos. Roda-os para ver as diferentes cores que assumem à medida que se ajustam ao calor da sua pele. Convenientemente, são anéis de humor. Esta cena em particular parece uma piada privada. O filme de Estrela explora os choques entre a mente e a matéria, e neles a mente normalmente vence. O mundo exterior dobra-se aos caprichos do sonhador ou do observador sonolento. A floresta laranja nuclear de Sol e Sorte é precedida pelo carmesim onírico de Bela Mandil. Até os desejos extremos de Transportation Procedures for Lovers nunca são totalmente rejeitados. Apesar da FedEx não disponibilizar o transporte de pessoas ou de “almas cantando em chamas”, o brinco prateado de um lobo-transformado-em-pastor pendurado da orelha da mulher que grava a sua recusa num postal (para quem?) alude à possibilidade de outras inversões míticas. Mais tarde, uma mulher tenta aprender telepatia a partir da WikiHow.
Em circunstâncias assim o discurso pode acontecer, mas o diálogo raramente. “Ontem sonhei que acordava e não conseguia falar”, um homem lê de uma carta em Transportation Procedures for Lovers. Não sabemos se está endereçada a si. A única conversa — na qual uma mulher liga para a FedEx — que acontece neste filme pode bem ser automatizada. À excepção de Bela Mandil, ninguém é apanhado a falar com outra pessoa, pelo menos no ecrã. Em Plática de una Flor (2020), um homem dirige-se a um outro invisível ou ausente, mas a sua declaração, que é repetida, é críptica, completamente hermética. Perto do final de Transportation, a voz de uma mulher a ditar texto em inglês é cortada pela voz de um homem a ler em voz alta o histórico de uma pesquisa. As vozes podem coincidir, mas não há troca. O mesmo é verdade para os supostos amantes de Bela Mandil. Nunca parece que estão a falar um com o outro, mas antes a recitar um discurso que cada um aprendeu há muito tempo, os ditames de um coração isolado e barricado. Têm olhos que podem ver o outro, mas que não o conseguem reconhecer. Apesar de poderem ver das suas muralhas, nunca descem delas. Salvo um único beijo, em Transportation toda a intimidade física é limitada, sendo ainda prefaciada por desenhos que poderiam ter sido retirados de tutoriais de primeiros socorros.
Tudo isto equivale a uma insistência implacável na nossa separação de nós mesmos e dos outros, à nossa incapacidade de verdadeiramente tocar ou escutar ou ver. Talvez mais do que qualquer outra coisa, o estilo cinematográfico de Estrela lembra-me da técnica de blason na Poesia Elisabetana, a sua recusa em fornecer um retrato completo ou objetivo de alguma coisa ou de alguém. Em vez disso, o que nos é dado é explicitamente colorido pelo sentimento individual, e somos deixados a reconstruir aquilo que a poeta ou a realizadora viu e interpretou para nós, ou mesmo a tentar construir juntamente com elas algo que nunca antes foi vislumbrado na sua totalidade—a tentar ver, e ver realmente, contra todas as probabilidades.
Missouri Williams
Coeditora da revista de cinema Another Gaze, Missouri Williams colabora, como cronista e crítica, com meios como The New York Times, The Nation, The Believer, Granta, Five Dials e The Drift. O seu primeiro romance, The Doloriad, foi publicado em 2022 pela Farrar, Straus e Giroux, nos EUA, e pela Dead Ink Books, no Reino Unido. Em conjunto com Daniella Shreir, está atualmente a trabalhar no lançamento da Another Gaze Editions, nova editora dedicada à escrita sobre cinema feita por mulheres.
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