Nove anos após os Estados Unidos lançarem as bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki, Godzilla emerge do mar. O filme, extremamente popular, deu origem a 37 outros filmes, além das inúmeras versões para televisão, banda desenhada e videojogos, que fizeram do gigantesco réptil pré-histórico um elemento da cultura popular. No ano passado, Godzilla Minus One ganhou o primeiro Óscar do franchise. Ambientado nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial, apresenta um piloto kamikaze problemático envolvido nas tentativas de matar Godzilla. Para mim, o título evoca Alemanha Ano Zero (1948), o grande filme de Roberto Rossellini sobre o rescaldo imediato da guerra.
A primeira ofensiva de Godzilla à ilha de Odo ocorre sob o disfarce de uma tempestade. O ataque, que acontece depois do misterioso e súbito naufrágio de vários navios, resulta na destruição de casas e de gado, e na morte de nove pessoas. No início, é difícil distinguir o monstro da tempestade, violenta, mas comum. Durante grande parte do filme, este adversário gigantesco é tratado como uma força da natureza: destrutiva, mas sem motivo nem intenção. Ainda assim, como observa o professor paleontologista Yamane (Takashi Shimura, o lendário ator que participou em 21 filmes de Akira Kurosawa), o monstro pode ficar furioso se lhe forem apontadas luzes brilhantes aos olhos. Tolera, mas claramente não gosta, de tiros de canhão ou de eletrocussão. Em filmes posteriores, Godzilla luta ao lado dos humanos. Aqui, enfurece-se com eles. Chega a Tóquio, onde esmaga e queima indiscriminadamente comboios, edifícios e pessoas. É como se Godzilla tivesse consciência das forças bélicas e sedentas de poder que o criaram e, consequentemente, desempenhasse o papel de um anjo vingador.
Godzilla é uma catástrofe criada pelo homem, sem dúvida. Uma trilobite encontrada numa das pegadas de Godzilla oferece uma pista importante sobre a sua origem, que Yamane data do Período Jurássico. Durante todo este tempo, argumenta, este dinossauro meio terrestre e meio aquático tem-nos observado de uma caverna submarina. As leituras do contador Geiger apontam para o momento da sua emergência: os testes com bombas de hidrogénio no oceano despertaram-no e deram-lhe novos poderes devastadores, como a sua capacidade de lançar um sopro atómico incendiário e, como os episódios posteriores retratam mais detalhadamente, a sua capacidade de se regenerar. Godzilla é, neste sentido, o primeiro super-herói mutado e tornado praticamente invencível pela energia nuclear.
Apesar de toda a atenção que a história do cinema tem dado a este monstro — ou a Haruo Nakajima, o heroico ator que aguentou mais de 100 quilogramas de arame, bambu, látex e borracha para lhe dar vida —, filme foca-se nas pessoas. Curiosamente, os homens da vida de Emiko (Momoko Kōchi) são os que mais empenhados estão em perseguir Godzilla. Yamane, que insiste em estudar a criatura pelos seus extraordinários poderes de sobrevivência, é o seu pai. Emiko está noiva de Serizawa (Akihiko Hirata), colega de Yamane, que está a desenvolver em segredo uma poderosa arma, o “Destruidor de Oxigénio”. Entretanto, ela começa uma relação com Ogata (Akira Takarada), o capitão de um navio de resgate que acaba por acompanhar Serizawa ao fundo do oceano para lá colocar o pacote letal.
De certa forma, Emiko é o oposto de Godzilla, franzina e recatada, ao passo que o kaiju é enorme e irado. Mas é isso que atrai toda a atenção que, de outra forma, teria ido para Emiko. Ela nem sequer tem hipótese de romper o noivado.
Não são as personagens designadas que constituem o núcleo moral do filme, mas os homens, as mulheres e as crianças que fogem, se abrigam e cuidam uns dos outros. A experiência recente da guerra é evidente em cada plano e, apesar da natureza fantástica da fera, existe um tom sombrio nas lentas panorâmicas que atravessam uma cidade em chamas. É impossível evitar a memória da devastação nuclear. Como diz uma mulher: “Escapei por pouco à bomba atómica em Nagasaki — e agora isto!”
Em grande parte, este é um filme sobre a ordem institucional, tanto sobre a sua impressionante coordenação como as suas falhas. As primeiras cenas acontecem em audiências públicas, salas de estratégia, centros de comando e salas de despacho. Isto permite que a natureza das instituições governamentais, militares, científicas e da comunicação social emerja, bem como as críticas a estas instituições. Na opinião de Honda, todas são extremamente burocráticas. Numa cena decisiva, são retidas informações cruciais porque um soldado se recusa a abandonar o seu posto. Mais grave é a sugestão de que as autoridades adiaram o aviso à população, com receio de causar pânico indevido. Honda reserva o seu julgamento mais duro para a imprensa, que se entrega morbidamente ao sensacionalismo.
No último terço do filme, Godzilla aparece de forma plena e terrível. É doloroso vê-lo a destruir a cidade. É um sentimento que não é apenas evocado pelas pessoas que assistem, assustadas, mas que vem do próprio monstro, nomeadamente do som angustiante do seu rugido. Criado com recurso a uma luva embebida em resina de pinheiro esfregada na corda de um contrabaixo, este grito sinistro é uma espécie de música, e talvez não tão estranha quanto possa parecer.
Genevieve Yue
Genevieve Yue é professora associada de Cultura e Media e directora do programa Screen Studies no Eugene Lang College, The New School. É coeditora da série Cutaways na Fordham University Press, e os seus ensaios e críticas foram publicadas na Reverse Shot, October, Grey Room, The Times Literary Supplement, Film Comment e Film Quarterly. O seu livro Girl Head: Feminism and Film Materiality foi publicado em 2020 pela Fordham University Press.
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