Deve ser das coisas mais irresistíveis, desde que surgiram as câmaras de filmar portáteis e com gravação de som sincronizado que permitiram sair à rua para filmar, a de entrevistar desconhecidos sobre diversos assuntos. Pode parecer, hoje em dia, uma trivialidade, cada um nós com uma câmara de filmar no bolso, mas no início da década de 60, esse gesto de registar as opiniões de pessoas anónimas foi algo revolucionário, que criou um enorme legado na área do documentário, através de autores como Jean Rouch e Edgar Morin (Chronique d'un été, 1961), Paul Almond e Michael Apted (a série Up, filmada desde 1963 de sete em sete anos), os irmãos Albert e David Maysles, e, particularmente em Itália, com Pier Paolo Pasolini e o seu filme Comizi d’amore (1964). Nesse documentário, Pasolini percorria o país entrevistando pessoas comuns, com perguntas sobre o sexo, amor e liberdade. Quase 60 anos depois, Alice Rohrwacher, Pietro Marcello e Francesco Munzi, os co-realizadores de Futura, recuperam essa tradição de ouvir as pessoas na rua, de dar voz a quem não é normalmente ouvido no espaço público, focando-se, neste caso particular, nos adolescentes italianos e nas suas preocupações e visões para o futuro.
A equipa de realizadores percorre Itália e os seus diferentes recantos, desde cenários urbanos a pequenas aldeias, desde escolas profissionais a artísticas, desde aspirantes a bailarinos a boxistas, alunos de filosofia a agricultores. Mais do que encontrar uma identidade italiana ou de adolescente, deparam-se com uma diversidade de opiniões, uma cacofonia de projectos pessoais, onde ainda assim desponta uma ideia transversal, de insatisfação, de desilusão perante a proximidade da vida adulta. Muitas das preocupações são materialistas: como encontrar um emprego, como comprar uma casa e um carro, a possibilidade de ter de ir para fora, o pessimismo em relação às perspectivas laborais. Poucos imaginam um futuro risonho e são muitas as incertezas, e as vidas sentimentais e amorosas ficam em segundo plano perante as pressões económicas do dia-a-dia. Futura começou a ser filmado em Janeiro de 2020 e é também um registo do seu tempo, afectado pela pandemia de covid-19 que, além de alterar os planos para o filme, se tornou outro factor de descontentamento para estes jovens, algo que veio acentuar o sentimento de isolamento, injustiça e escassez de oportunidades.
Neste coro de vozes, são vários os momentos que saltam à vista, mas destaco dois pelo seu valor simbólico. O primeiro é filmado num abrigo juvenil que alberga jovens, alguns imigrantes que atravessaram fronteiras à procura de uma vida melhor, cujo italiano ainda não é perfeito, mas que mesmo assim não se coíbem de exprimir as suas ideias. Perante a pergunta de Rohrwacher sobre o que fariam se fossem o primeiro-ministro, um deles diz que procuraria apenas proporcionar uma vida melhor para todos, que todos temos direito a viver o mesmo, por muito que isso pareça impossível, e outro ainda vai mais longe e afirma que acabava com o dinheiro, porque, dessa forma, as pessoas seriam todas iguais; é uma fantasia de igualdade, tão desarmante como comovente, porque vem exactamente de quem está mais fragilizado, sem rede de apoio. O segundo momento, talvez ainda mais surpreendente, é um segmento filmado em Génova, precisamente na escola onde, em 2001, durante uma reunião do G8, centenas de jovens activistas foram brutalmente agredidos e retirados à força pela polícia, um dia depois de a polícia ter matado a tiro um outro manifestante. A revelação do desconhecimento e alheamento em relação ao que aconteceu é também desarmante porque demonstra uma ideia de conformismo, diametralmente oposta aos seus pares de há 20 anos, muitos deles estudantes em idades semelhantes, a manifestarem-se por um mundo melhor, um facto sublinhado pelos realizadores, que contrapõem a estas declarações imagens de arquivo dos eventos de 2001, evidenciando o resultado da repressão policial. É um equilíbrio frágil, a impossibilidade de generalizações que o filme tenta retratar — por todos os que dizem que têm como sonho apenas comprar um carro ou serem famosos, há outros que imaginam um cenário de solidariedade e entreajuda ou que sonham com um futuro diferente, e é nessa incerteza que reside a esperança.
João Araújo
Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia do Porto, João Araújo escreve sobre cinema no À Pala de Walsh (do qual é coeditor desde 2017). Colabora, desde 2016, com o Festival Curtas de Vila do Conde, no comité de seleção, na moderação de conversas com realizadores e na coordenação editorial. É diretor e programador do Cineclube Octopus desde 2003. Em 2010, apresentou em vários pontos do país um filme-concerto a partir da filmografia de Yasujiro Ozu. Em 2015 colaborou com o Porto/Post/Doc na programação de um ciclo dedicado a Lionel Rogosin.
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