Filmar como quem escuta
O chão de uma região pantanosa, às margens de um curso d’água. Sobre a areia úmida, acumulam-se gravetos e pedras. As texturas são imprecisas, mas o foco está posto sobre um ninho com quatro ovos ao pé do quadro. O enquadramento não se moverá durante vários minutos. Tampouco haverá corte. Mas a mão hesita, a linguagem titubeia antes de descrever o prólogo de Eami como um “plano fixo”. Não há movimento das bordas nem interrupção, mas desde o início o plano não cessa de se transformar, rejeitando toda e qualquer fixidez. O vento fustiga sem cessar e traz consigo folhas, penas, neblina e fumaça, em rajadas sucessivas. O som é uma sinfonia de ruídos, de fogo e ar, animais e máquinas, noites e dias, a sugerir presenças em todas as direções. As cores vão de um azul alvorecente ao amarelo crepuscular, do cinzento ao vermelho-fogo, como se uma só duração fosse capaz de aninhar os tempos mais disparatados.
Em meio às mutações incessantes da imagem e do som, uma voz feminina narra o mito fundacional do povo Ayoreo, até chegar a um ponto de ruptura. Houve um tempo em que havia um fôlego, e desse fôlego nasceu o vento, e desse vento surgiu um canto, e desse canto brotaram todos os habitantes da natureza. Houve um tempo em que o mundo inteiro era Ayoreo. Até que um dia apareceu um som estranho, chegaram homens e mulheres insensíveis — os coñone — e todos os que viviam na floresta tiveram de fugir. O monte se converteu em fogo e cinzas, e agora os sobreviventes vagam pela terra sem descanso. Nessa miríade de acontecimentos visuais e sonoros, que se sucedem e se entrelaçam, as temporalidades se condensam, incontidas no espaço-tempo de um plano de cinema. O que Paz Encina formula aqui, já no prólogo e logo em todo o filme, é uma recusa às formas da linearidade e da cronologia, e um abraço às formas do mito. E o mito é condensação, mas também transformação. Eami é um magma em ebulição: nele se depositam os sedimentos milenares de uma história ancestral — que, no entanto, ferve. Fértil como aqueles ovos, sua forma não cessará de abraçar a indeterminação permanente.
A palavra “eami” significa floresta, mas também mundo. A protagonista é um pássaro que narra em língua ayoreo com voz feminina adulta, mas também é uma menina indígena com voz angelical — que, por sua vez, se chama Eami. Nós a vemos pela primeira vez recebendo os cuidados de um xamã. Talvez em transe, talvez um espírito desgarrado de um corpo, ela percorrerá o território em busca de seus amigos desaparecidos, enquanto o filme coleciona lampejos: uma casa fustigada pelo vento, habitada por uma mulher branca; jagunços caçadores de índios; fragmentos da paisagem, ora devastada, ora ainda exuberante; indígenas capturados ou dispersos pelo território, tentando escapar ao desastre iminente.
O que vemos nessas cenas fragmentárias, no entanto, é menos da metade da experiência do filme. Desde Hamaca Paraguaya (2006), Paz Encina tem se provado uma das grandes criadoras sonoras do cinema do nosso tempo, e Eami é um passo firme nessa direção. A cada imagem composta com rigor marmóreo, mil revoluções sonoras desestabilizam tudo ao redor. Além das narrações, a banda sonora é feita de uma multidão de animais que nunca vemos, do ruído incessante das árvores fustigadas pelo vento, e também das vozes indígenas que, em tom documental, dão espessura ao relato. Uma e outra vez, o barulho das asas do pássaro-protagonista nos atravessa, de um ouvido ao outro, como um presságio ou uma constatação infernal. Indeterminado, errante, o som nos rodeia e nos obriga a imaginar.
E se é da natureza do som o titubeio, a vagueza, a realizadora compõe cada imagem como quem escuta, muito mais do que como quem enxerga: cada plano de Eami terá sempre uma qualidade errática, hesitante, entre a vigília e o sonho, entre a figuração e o transe. Se o círculo virtuoso da vida indígena —marcado pela harmonia entre os humanos, a fauna e a flora — foi interrompido pelo círculo vicioso das invasões brancas, que devastam o território em incursões sucessivas, Eami será feito da sobreposição dessas circularidades: à transmutação da cosmologia indígena em forma cinematográfica, que resulta numa tessitura sem dicotomias, nem limites estáveis, nem teleologia possível, sobrepõe-se o retorno infernal da devastação, que carcome o filme por dentro. Eami é um filme de aparições irresolutas e de ressonâncias insuspeitas. Nossos olhos nunca estarão certos do que veem. Nossos ouvidos nunca estarão a salvo. Ainda bem.
Victor Guimarães
Crítico de cinema, programador e professor. Doutorado em Comunicação Social pela UFMG, com passagem pela Université Sorbonne-Nouvelle (Paris 3). Colaborou com publicações como Cinética, Con Los Ojos Abiertos, Senses of Cinema, Desistfilm, Outskirts, Documentary Magazine, La Vida Útil, La Furia Umana e Cahiers du Cinéma. Foi programador no forumdoc.bh, na Mostra de Tiradentes e na Woche der Kritik de Berlim, e realizou programas especiais para espaços como XCèntric (Barcelona), Essay Film Festival (Londres) e Cinemateca de Bogotá. Atualmente, é programador do FICValdivia (Chile) e diretor artístico do FENDA (Brasil).
©2024 Batalha Centro de Cinema. Design de website por Macedo Cannatà e programação por Bondhabits