Dust
Kitty Furtado
8 de Fevereiro de 2024

Fragilidades Aumentadas

“Our lies reveal as much about us as our truths.” — J. M. Coetzee, Slow Man (2004)

Dust
é uma produção franco-belga e Marion Hänsel (também franco-belga, 1949–2020) dirigiu este filme em meados da década de 1980, talvez a mais dura do regime de Apartheid e também da resistência que lhe foi feita. É razoável considerarmos que os públicos no “ocidente” e — pensando neles — os financiadores europeus estariam suscetíveis a temas direta ou indiretamente relacionados com as questões políticas da África do Sul. O filme de Hänsel é baseado numa obra de 1977 de J. M. Coetzee (n. 1940), o controverso autor sul-africano (prémio Nobel da Literatura em 2003), que tinha escrito esta novela a pensar na sua adaptabilidade ao cinema. Curiosamente, o filme foi rodado em Espanha e a sua estrela principal é a anglo-francesa Jane Birkin (1946–2023), que pela sua beleza e ousadia se tornara célebre, uma década antes, ao lado de Serge Gainsbourg (1928–1991) e cuja aura rebel-chic emprestara o seu nome à caríssima bolsa da marca Hermès, a Birkin Handbag, no ano anterior à estreia do filme. Dust ganhou o Leão de Prata no Festival de Veneza e a performance da frágil e perturbada Birkin foi merecidamente reconhecida como uma das melhores do ano. E afinal, ainda hoje, é Jane Birkin que nos traz ao cinema, certo?


A não ser que façamos o exercício de olhar para o filme enquanto reprodução de um mundo abissal que a história que ele conta parece querer desmontar, tudo isto nada tem a ver com África do Sul, com o Apartheid, ou com a luta que o derrubou. Porém, tem a ver com o cinema enquanto indústria de entretenimento, extrativista das dores do mundo, feita para alimentar o nosso desejo e a nossa ilusão democrática, enquanto joga para debaixo do tapete consciência crítica e deveres de cidadania. Dust é um filme sobre relações familiares, desejo, sexo e morte, no entanto, pode também ser lido como um retrato inacabado da psicose colonial.


A coreografia doméstica que as personagens de Dust executam começa por nos parecer imprópria para o espaço onde a ação decorre. Porém, como veremos, estes gestos criteriosamente afinados ao longo do tempo são imprescindíveis à sobrevivência do grupo que os impõe ao mundo. A severidade inóspita e aparentemente imutável da paisagem é vencida pela observação rigorosa de uma disciplina espartana, marcada por códigos inquestionados relativos ao género e à raça e também pelo relógio de parede, ao qual todos os dias Magda (Jane Birkin) dá corda. Deste modo, as primeiras imagens do filme situam a ação numa fazenda tão vasta quanto remota, da região árida e desértica de Karoo, na África do Sul, ao mesmo tempo que a precipitam para a intimidade da casa e para o mundo interior de Magda. A adaptação de Marion Hänsel da novela In the Heart of the Country (1977) de J. M. Coetzeeé o filme do olhar solitário e delirante da reprimida Magda sobre o mundo que a rodeia.

A narradora pouco fiável desta história mora com o pai (Trevor Howard, 1913–1988), um viúvo severo e senhorial. Percebemos que Magda tem uma imaginação fértil e violenta quando ela vê o pai chegar a casa numa carruagem puxada por cavalos e acompanhado por uma jovem noiva. Desconcertada com esse acontecimento, Magda entra no quarto nupcial e ataca o pai com um machado. Ficará, contudo, claro que esse parricídio sangrento e brutal não aconteceu e que também não houve casamento; esta fantasia violenta é um prenúncio.


Quando Hendrick (John Matshikiza, 1954–2008) pergunta se a sua noiva Anna (Nadine Uwampa, s.d.) pode juntar-se a ele como empregada da família, Magda aceita e, no mesmo gesto, atribui à jovem um outro nome, rebatizando-a com o argumento de que já tem, em casa, uma empregada chamada Anna. Este abuso (como exemplo simbólico de todo o abuso) praticado com displicência terá um preço. Na base de toda a trama que se segue está a inveja racial, que se caracteriza pelo desejo de possuir alguns atributos do Outro Negro e ao mesmo tempo de o destruir, porque ele representa algo ausente do Eu (branco). No mundo conceptual que esta quinta traduz o sujeito Negro torna-se um objeto de desejo que deve simultaneamente ser atacado e destruído enquanto pessoa. À medida que o filme mistura de forma desconfortável realidade e fantasia, a rotina doméstica é interrompida (desfazendo-se a coreografia), os vínculos familiares são distorcidos, os papéis de mestre e servo são momentaneamente invertidos, e a odiosa e psicótica mentira colonial desmorona.


O mundo estilhaçado que resulta da falência da ordem vigente não sobrevive. Ao longo do filme, os monólogos delirantes de Magda vão deixando a proteção dos espaços recônditos da casa, e à claustrofobia inicial é acrescentada uma fragilidade física e mental, cada vez maior. A vastidão da paisagem nunca põe em causa a ideia de fechamento. O filme terminará com Magda totalmente isolada na quinta, cada vez mais próxima da loucura. Sem a estrutura em que sempre apoiou a sua vida, a mulher não consegue realizar as tarefas mais básicas e nem sequer os animais lhe obedecem. Na sequência final, Magda está de novo com o pai. Colocamos brevemente a hipótese de tudo ter sido apenas mais um sonho e, é claro, pode muito bem ter sido. Contudo, uma fragilidade aumentada pelos cabelos embranquecidos do idoso, a forma atenciosa com que ele ouve as memórias de infância da filha — com reminiscências de viagens à beira-mar — sugerem que este momento é o sonho.


A empresa colonial é fundadora de uma perturbação mental que torna difícil determinar o que é ou não real, a que se chama psicose, e que afeta de modos diferentes colonizadores e colonizados. Ao contrário do livro de J.M. Coetzee, Dust, de Marion Hänsel, arrisca ser lido apenas como um filme sobre a fragilidade mental de uma mulher mal-amada. Essa leitura, talvez injusta e superficial, é possível porque Hänsel retira da centralidade da ação os acontecimentos brutais e os sentimentos tortuosos que fundam o comportamento de todas as personagens.

Kitty Furtado

Ana Cristina Pereira (Kitty Furtado) é crítica cultural empenhada na diluição de fronteiras entre academia e esfera pública. Tem curado mostras de cinema (pós)colonial e promovido a discussão pública em torno da memória, do racismo e das reparações. Doutora em Estudos Culturais pela Universidade do Minho e investigadora do CECS, coordena o GT de Cultura Visual da SOPCOM e coedita a VISTA: revista de cultura visual. Com Rosa Cabecinhas, publicou o livro Abrir os gomos do tempo: conversas sobre cinema em Moçambique (2022).

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