O sucesso nem sempre se deve a razões válidas. É deveras o caso deste filme, que suscitou uma grande polémica aquando da sua estreia tão-somente devido ao escândalo provocado por uma cena de sexo explícito, em planos muito curtos, censurada tanto nos Estados Unidos como no Reino Unido — a propósito da qual, uns quarenta anos mais tarde, depoimentos viriam a ser prestados, confrontados e contestados, no intuito de tirar a limpo se o tal acto sexual fora simulado pelos actores (Donald Sutherland e Julie Christie), ou se houvera penetração durante a rodagem. Ora, o sentido e o interesse da cena em causa decorre da montagem paralela desses planos carnais com outros, igualmente rápidos, em que ambas as personagens, separadamente, se vestem: figura essa que permite compreender a efemeridade da comunhão entre aqueles dois seres; apesar do amor sincero que os liga, a oposição entre marido e mulher vai-se manter e evoluir para uma separação fortuita face ao anúncio da morte do filho de ambos e tornar-se por fim definitiva. Os dois protagonistas correrão um atrás do outro, mas não se reencontrarão. Todavia, o sucesso engendrado pelo escândalo chamou a atenção de numerosos críticos e cineastas, para quem o filme se tornou uma referência. Muitos foram os realizadores que citaram — quase plagiando — elementos da obra (e nem sempre realizadores especialistas do giallo como Dario Argento). De Danny Boyle a Steven Soderbergh e Martin McDonagh — que filma uma cidade de Bruges labiríntica conforme o modelo da Veneza de Roeg e retoma igualmente o princípio da substituição da criança pelo anão[1] — passando por Christopher Nolan, Fabrice Du Welz e Lars von Trier. E David Cronenberg, claro está, que o menciona como referência e influência para os seus próprios filmes. De facto, Nicolas Roeg retoma aqui a problemática metacinematográfica hitchcockiana que postula o visível como projecção, logo imagem, sendo os protagonistas tão-somente uma figuração do próprio espectador. Era explicitamente o caso no seu Rear Window, em que a janela é apresentada como ecrã no qual Jeff, imobilizado, projecta desejos e suspeitas — que Lisa, verdadeiro objecto dos seus fantasmas, terá como missão verificar. Do mesmo modo, Vertigo, em que Scottie obriga Judy a reencarnar Madeleine, e, em menor escala, Strangers on a Train, The Man Who Knew Too Much ou The Wrong Man. Nicolas Roeg aprofunda o dado simplificando-o: é a cega que vê; as visões, tais como a mancha de sangue ou o cortejo fúnebre, não são erros mas antecipações; os rostos — estátuas ou mosaicos — têm de ser reconstituídos, embora só remetam para o sujeito que projecta, um sujeito por conseguinte ausente das imagens projectadas. O filme propõe-se interrogar o visível: os fantasmas pertencem ao imaginário ou são simplesmente assíncronos, antecipações ou recordações? Ao formular esta interrogação, o filme remete o espectador para a sua actividade de voyeur: será que não lhe acontece, como ao protagonista, enganar-se nas suas interpretações dos indícios percepcionados? As sequências de montagem rápida são todas compostas de fragmentos já vistos, curtos flash-backs destinados a despertar a memória do espectador. À excepção da cena de cópula já analisada, em que a velocidade mais não faz do que acelerar o regresso do casal à divergência de atitude e de sentimento; não obstante a explicação do realizador, que justifica a cena com a preocupação de não exagerar no número de discussões conjugais, constata-se, graças à montagem paralela em que o casal se veste, que a cena significa que o prazer físico não basta para manter entre os amantes uma relação de solidariedade.Salvo esta excepção, ao recorrer a sequências compostas de fragmentos já vistos Roeg constrói o seu filme como um puzzle do qual fornece as peças, a fim de que o espectador possa encaixá-las umas nas outras. Certas imagens são recorrentes, um pouco à maneira do refrão nas cantilenas infantis; por outro lado, certos elementos voltam cena após cena, em jeito de leitmotiv de carácter simbólico ou premonitório: a água (e o afogamento), e o vidro quebrado (e o sangramento), que, ao longo do filme, figuram e prefiguram a morte. É, pois, no plano formal que o filme manifestamente terá tido uma influência mais marcante. Nenhum dos filmes seguintes de Roeg, alguns nitidamente mais engajados, ao nível político, ou de análise de comportamentos e sentimentos, conhecerá o sucesso de Don’t Look Now — apesar de Mark Cousins e Danny Boyle terem escolhido Eureka, de 1983, como um dos seus filmes preferidos. É talvez por Don’t Look Now assumir o seu lugar num género menor, o giallo, thriller psicológico e fantástico, que as audácias cometidas e a originalidade formal ousada justamente o destacavam e ele pôde tornar-se uma referência para realizadores mais jovens. Trata-se então de um dos raros casos em que o escândalo — alheio às qualidades intrínsecas do filme — tem consequências positivas.
[1] cf. crítica in Caderno do Curso de Crítica de Cinema, em breve editado pelo Batalha Centro de Cinema
Saguenail
Doutorado em Cinema e Pedagogia pela Universidade de Provence (França), Serge Abramovici (Saguenail) lecionou língua francesa, pedagogia, literatura e cinema na UM, na ESMAE, na ESAP e na FLUP. É autor de meia centena de livros (poesia, ficção, ensaio) e de uma vasta filmografia (mais de 40 títulos, alguns em parceria com Regina Guimarães). Fundou a revista A Grande Ilusão e a associação Os Filhos de Lumière. Foi programador do ciclo O Sabor do Cinema, no Museu de Serralves (2002–2013). Atualmente, anima o programa Literama e Cinetura. É membro-fundador do Centro Mário Dionísio/Casa da Achada.
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