Domestricidade(s)
Alejandra Rosenberg Navarro e Ana David
8 de Março de 2023

Os últimos dias de 2019 foram marcados pelo surgimento de um conjunto de sintomas que mudariam a nossa relação com a casa. A pandemia da Covid-19 resultaria no encerramento de fronteiras entre nações e pressionaria alguns trabalhadores a ficarem em casa, enquanto forçava outros a continuarem a trabalhar fora dela. À medida que o endurecimento das fronteiras — tanto em termos territoriais como de casa — tornou as clivagens de classe, raciais, e de cidadania hiper visíveis, o espaço doméstico fez-se protagonista das nossas vidas. Esta viragem em relação à casa revela como a esfera privada foi sempre atravessada pela luta política.

Domesticidade(s) emerge da atenção que se presta aos espaços que habitamos; os espaços em que se descansa e onde se vive; os espaços do lar ou da vida familiar. Em vez de carregarem significados estanques, estes espaços encontram-se em constante transformação. Sugerimos, assim, pensar em domesticidade(s); experiências plurais dos espaços em que vivemos, comemos, dormimos, fazemos amor, cuidamos uns dos outros e de nós (ou não). Ao longo de dez sessões, Domesticidade(s) reúne filmes que abrem a porta para o habitualmente invisibilizado espaço doméstico, reflectindo sobre os limites e a violência — mas também as possibilidades — de casa, família, trabalho doméstico, cuidado e amor, tempo e deslocamento. O acto de cuidar é de especial importância na primeira parte do programa: o trabalho doméstico é relegado para o dever da mulher, perpetuamente feminizado, considerado improdutivo e pertencendo à esfera privada, e desta forma explorado pelo capitalismo e o patriarcado.

Tomando como ponto de partida a fragmentação do ideal da casa a partir dos anos 60, Domesticidade(s) inicia-se com a performance Semiotics of the Kitchen de Martha Rosler, de 1975, onde a artista isola palavras e acções de resto convencionais — segura um garfo, diz o seu nome (“fork”), e espeta-o no ar. Acções repetitivas e monótonas que ressoam nas imagens em movimento de Pedro Almodóvar, Chantal Akerman, Dóra Maurer, Ousmane Sembène, Fronza Woods, Zeinabu irene Davis, Susana Nobre e Gabriel Mascaro. Através de diferentes modos de representação, alguns destes filmes centram-se nas experiências de trabalhadoras domésticas. La noire de…, de Sembène, traz para o ecrã a violência de pessoas brancas europeias dirigida a empregadas domésticas negras, evidenciando o racismo da história colonial europeia, ainda presente no Portugal contemporâneo. Doméstica, de Mascaro, revela as dinâmicas, complexas e de múltiplas camadas, de classe, de raça, emocionais, e de poder, entre crianças e pessoas trabalhadoras domésticas.

Neste ciclo, a câmara também age como um remédio contra o tempo face à doença (nos filmes de Friedman e de Yang); enquanto ferramenta na procura da casa face ao deslocamento (nos filmes de Yang e al-Sharif); e, finalmente, enquanto meio de lidar com uma reclusão forçada (no filme de Panahi). Em Home Movies Gaza, Dear Pyongyang e This Is Not a Film, câmaras de pequena dimensão fazem a mediação entre cineastas e as políticas traumáticas das suas domesticidades. O ciclo termina reflectindo sobre as possibilidades de tornar queer a forma como nos relacionamos com quem nos importamos, mostrando os limites e as possibilidades de habitar o espaço doméstico nos nossos próprios termos. Em So Pretty, Dunn Rovinelli mostra o lar enquanto lugar não-normativo para o amor, o cuidado, a família, e o abrigo. Os espaços que habitamos são nossos para os tornar seguros, e nossos para os encher com aqueles que amamos.

A casa não é um dado adquirido. No momento em que este ciclo é apresentado assistimos em Portugal, na Europa e no mundo, a uma profunda crise na habitação — agravada e tornada insustentável pela pandemia, a inflação, e a incapacidade dos governos em oferecer soluções — afectando aqueles já desalojados, e colocando novas pessoas em risco. Casas para o Povo olha para o recente passado histórico português, no Porto, para lembrar que a escassez de habitação acessível é um problema há demasiado tempo.

Domesticidade(s) mostra o cinema do real tanto em filmes de ficção como em documentários: as narrativas na primeira pessoa rompem com os imaginários tradicionais de casa; câmaras seguradas à mão tornam-se num outro participante; cineastas racializados e queer narram as suas próprias histórias no espaço doméstico; o cinema militante denuncia o deslocamento e a falta de acesso à habitação. Desde Nova Iorque em 2019 ao Senegal e à França dos anos 60, passando por Irão, Brasil, Espanha, Japão, França, Coreia do Norte, Palestina e Portugal, Domesticidade(s) oferece uma selecção não-exaustiva, mas plural, de visões — por vezes queer, por vezes feministas interseccionais — sobre os espaços a que chamamos casa.


*Gostaríamos de agradecer a Paulina Lorenz, que abriu caminho para a concepção deste ciclo.

As autoras escrevem segundo a antiga norma ortográfica.

Alejandra Rosenberg Navarro

Programadora de cinema, professora e investigadora, fez parte da equipa de programação do IndieLisboa, e atualmente desenvolve ciclos de cinema focados em temáticas de género e feminismo interseccional. Está a finalizar uma tese de doutoramento na New York University, intitulada Transatlantic Lenses: Gender and Amateur Cinema in Iberia and Latin America (1920s–1930s), onde estuda a produção de cinema amador realizado por mulheres no primeiro terço do séc. XX., em países como México, Brasil, Espanha e Portugal.

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