Devi
Ece Canlı
4 de Dezembro de 2024

Quando o rosto vazio da deusa hindu Durga surge na cena de abertura de Devi, envolto nas partituras comoventes de Ustad Ali Akbar Khan, instala-se imediatamente um tom de mau presságio. O seu perfil nu começa a ganhar cor e ornamentos, juntamente com o ritmo crescente de sinos e tambores que revelam a grandiosidade da celebração de Durga Puja. De repente, vemos centenas de devotos a homenagear a Deusa Mãe com orações, sacrifícios de animais e a procissão cerimonial do seu andor em tamanho real, terminando com a sua submersão no rio local. Só mais tarde me apercebo que este ato de imersão da estátua de Durga é profundamente simbólico, prevendo o eventual sufocamento metafórico do seu reflexo humano — a nossa protagonista — ao longo da trajetória trágica do filme.

O enredo, que se desenrola rapidamente, decorre em 1860, nos limites de uma casa feudal bengali governada pelo zamindar viúvo Kalikinkar Roy (Chhabi Biswas), um patriarca devoto que vive com os seus dois filhos e as respetivas esposas sob o mesmo teto. O seu filho mais velho, o hedonista Taraprasad, está num casamento tenso com Harasundari, enquanto o neto encantador, Khoka, traz alegria à mansão inteira. Por outro lado, o filho mais novo de Kalikinkar, Umaprasad (Soumitra Chatterjee), partilha um vínculo terno e afetuoso com a sua esposa de 17 anos, Doyamoyee (Sharmila Tagore, que tinha apenas 15 anos na altura). Quando Uma parte para Calcutá para concluir os seus estudos de inglês, Doya fica para trás, dedicando-se a uma rotina doméstica, que envolve contar histórias ao seu querido sobrinho Khoka e atender obedientemente às necessidades do seu sogro. No entanto, a devoção obsessiva de Kalikinkar à deusa Kali reflete-se na sua admiração intensa — e, devo dizer, por vezes bastante sufocante e desconfortável — por Doya, ao ponto de a chamar de “Pequena Mãe”, confundindo os limites entre o afeto familiar e o fervor espiritual — e talvez imprimindo à expressão um tom sensual. Esta dinâmica culmina uma noite num sonho vívido, em que Kalikinkar vê Doya como uma encarnação da deusa Kali. Fortalecido pela riqueza e autoridade de Kalikinkar, o anúncio é recebido com uma aceitação inquestionável pela família e pela comunidade envolvente, elevando Doya a um pedestal (literalmente) como objeto de veneração, despojando-a do seu livre-arbítrio. Quando a cética Harasundari envia a Uma uma carta angustiada a pedir a sua intervenção, ele apressa-se a regressar para salvar a esposa deste papel opressivo. No entanto, a transformação de Doya já está enraizada, e a sua identidade subsumida no papel divino que lhe foi imposto. A tragédia agrava-se quando o pequeno Khoka adoece gravemente e a medicina é rejeitada em favor do “poder de cura” de Doya, o que leva à sua morte. Incapaz de salvar Khoka, Doya é esmagada pelo peso coletivo da expectativa, da superstição e do controlo patriarcal.

Este drama emotivo, que pode ser considerado a primeira incursão do realizador Satyajit Ray numa crítica sociocultural aberta, baseia-se numa tensão constante entre forças opostas na Bengala colonial: tradição e modernidade, razão e superstição, o antigo e o novo, devoção e exploração, o pessoal e o social, e a educação ocidental e os sistemas de crença orientais, incorporados mais claramente na dinâmica entre Kalikinkar e Uma. Vemos Uma, por exemplo, a ver o inglês como um portal para o conhecimento, a ter pensamentos progressistas, a fumar cigarros e a procurar orientação junto do seu mentor, que tem um retrato de Shakespeare na parede, e não altares religiosos. No entanto, Ray aborda estas dicotomias com uma notável nuance, sem desprezar a fé nem apoiá-la completamente, mas retratando esta tensão como uma luta profundamente humana — e, diria eu, pós-colonial. Ray parece evitar pintar Uma como uma figura de salvador simplista. Apesar da sua educação e do seu amor por Doya, o seu eventual fracasso em salvá-la realça a dificuldade de desafiar normas culturais profundamente enraizadas, bem como as limitações da razão perante a veemência coletiva. A crítica de Ray dirige-se diretamente ao modo como o fanatismo religioso, quando associado a estruturas patriarcais, se torna uma ferramenta de poder e controlo para subjugar as mulheres.

A este propósito, atrevo-me a dizer que as referências feministas estão presentes na narrativa de várias formas. Em primeiro lugar, é evidente que Doya está encurralada entre dois homens, o seu sogro e seu o marido, e não importa qual é o lado “certo”, porque, quer seja como uma jovem esposa comum, quer seja como uma divindade sagrada, a voz de Doya não é ouvida. Ironicamente, Doya transforma-se exatamente no oposto daquilo que Kali simboliza (vigor, poder indomável e força transformadora da natureza), perdendo a sua força divina inata. Esta transformação é magistralmente retratada através de grandes planos do rosto de Sharmila Tagore, captando a sua transição de uma jovem outrora vibrante, animada e brincalhona para uma figura passiva, atormentada e vazia. Quanto mais é venerada como uma Deusa, mais as suas expressões vibrantes se desvanecem, tornando-se quase tão sem vida e petrificada como o rosto vazio de Durga que inica e termina o filme. Ela até perde as suas faculdades mentais. Quando Uma tenta fugir com ela, Doya recusa-se a sair e pergunta: “E se eu for a Deusa?” Uma responde: “Se fosses, não o saberias?” Este diálogo arrepiante prova a sua desorientação e perda de identidade, uma vez que as forças manipuladoras a tornaram incapaz de discernir a sua realidade. Gaslighting, em síntese cinematográfica. Além disso, Ray expõe a hipocrisia dos ideais ocidentais de “modernidade”, quando o mentor de Uma enquadra a situação como um mero “teste”, dizendo-lhe que a verdadeira questão é que “como marido, foste privado dos teus direitos naturais”, ignorando a gravidade da situação de Doya. Mesmo nesta situação trágica, a narrativa critica subtilmente a forma como, mais uma vez, o homem se posiciona como a verdadeira vítima.

Em Devi, as escolhas visuais, como o jogo de luzes e escuridão e grandes espaços em contraste com os grandes planos faciais, também simbolizam todas aquelas tensões opostas. Transformando o conto de Prabhat Kumar Mukhopadhyay num drama de época evocativo, o filme é uma meditação intemporal sobre a contínua desumanização e despossessão das mulheres em nome da fé e do bem-estar coletivo. Hoje, esta premissa continua a ser influenciada não

só pelo dogma religioso, mas também pela política quotidiana.

Ece Canlı
Ece Canlı é uma investigadora, artista e música cujo trabalho cruza regimes materiais, políticas do corpo e performatividade. É doutorada em Design pela Universidade do Porto e é atualmente investigadora no CECS da Universidade do Minho, onde investiga as condições espaciais, materiais e tecnológicas do sistema de justiça criminal, o encarceramento queer, o design penal e o feminismo da abolição. Como artista, emprega técnicas vocais estendidas e eletrónica para criar som para performances encenadas, exposições e filmes, tanto em colaboração como a solo.

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