Muitos cineastas são atraídos pelo peso e o tumulto da culpa; David Pinheiro Vicente dedica-se à delicadeza da inocência. No calor húmido de Onde o Verão Vai (episódios da juventude), o seu primeiro filme de ficção, abundam elementos da história do Jardim do Éden: natureza paradisíaca, serpentes, fruta. O cineasta já revelou ter-se inspirado em “The Bible is an Antique Volume”, poema de Emily Dickinson no qual a autora chama ao Éden “a herdade ancestral”. Pinheiro Vicente regressa a este mito de origem, mas apenas para renunciar à lição que habitualmente ensina: sob o seu olhar, a sensualidade floresce intocada pelo pecado.
Na história de Adão e Eva, o casal vive nu e sem vergonha até que uma serpente os convence a comer da árvore do conhecimento proibida. Eva, criada a partir da costela de Adão, é a primeira a obedecer à solicitação da maliciosa criatura para desafiar a autoridade divina, e é ela que passa o fruto ao seu companheiro-progenitor, levando à expulsão de ambos do paraíso — acções que ajudam a forjar a noção, lamentavelmente persistente na cultura ocidental, de que a mulher é uma sedutora culpável e de caráter vacilante. Onde o Verão Vai vira as costas a tal proibição e culpa, bem como ao casal enquanto unidade fundamental da socialidade e sexualidade. No lugar do par primordial encontra-se um grupo variado de seis adolescentes, pulsando com energia carnal que circula indiscriminadamente. No conforto da natureza, disfrutam do ambiente e uns dos outros livremente, movendo-se através de permutações variáveis de intimidade, solidão e cuidado. Comem fruta sem castigo; acariciam uma serpente, inconsequentemente, que se atravessa no seu caminho.
A queda nunca chega.
A queda nunca chega, mas pequenos indícios dos seus calafrios são sentidos. Ao longo de Onde o Verão Vai, o verão e a juventude pulsam juntos como forças vitais, moldando um mundo sem pecado. No entanto, o título do filme e a sua forma elíptica evocam uma efemeridade agridoce, sugerindo um olhar retrospectivo a partir de um tempo em que os dias quentes diminuíram e a experiência terna da colectividade se tornou nada mais do que uma mão cheia de memórias fragmentárias. Uma segunda sombra de perda é lançada pela enigmática história contada no princípio do filme, sobre uma serpente que vive como animal de estimação no tipo de ambiente doméstico que Onde o Verão Vai nunca mostra. Mergulhada em violência latente, a relação entre a serpente e o seu suposto senhor alegoriza o problema de confiarmos nas nossas próprias impressões, assumindo a benevolência do outro.
Que a desilusão e a violência ameacem introduzir-se na ignorância abençoada, e que a passagem para o conhecimento seja marcada pela dor, são noções que, equitativamente mas de formas diversas, conduzem a segunda curta de Pinheiro Vicente, O Cordeiro de Deus. Filmado na antiga casa do pai do realizador, o filme foi inspirado pelas memórias deste último da vida de aldeia, bem como pelas pinturas de Paula Rego. No seu centro está um acontecimento que declina representar, o sacrifício de um cordeiro. Mais uma vez, Pinheiro Vicente volta-se para a iconografia cristã: se a serpente inaugura a passagem para o pecado, o sacrifício do cordeiro de Deus expia o pecado para toda a humanidade. Contudo, também aqui o cineasta joga habilmente com os significados convencionais vinculados ao simbolismo religioso que emprega. Em O Cordeiro de Deus, a morte do cordeiro não resulta na absolvição; é antes um acontecimento que provoca a perda da inocência de Chico, um jovem que se tinha afeiçoado ao animal e que acreditara na sua mãe quando esta lhe assegurara que o cordeiro ia simplesmente “fazer uma pequena viagem” e que regressaria.
A iniciação traumática de Chico na brutalidade da vida quotidiana encontra paralelo na experiência do seu irmão mais velho, Diogo, que ouve às escondidas — e possivelmente testemunha — um encontro sexual forçado entre a rapariga que ama e o homem para quem trabalha. No último plano do filme, depois do cordeiro se ter tornado carne na banca e sangue a ser limpo do chão, os dois irmãos deitam-se na cama lado a lado, em tronco nu, no calor. Sangue vermelho escorre por debaixo do sonolento Chico, sem uma causa aparente. Misturando um toque surrealista com as texturas realistas da vida rural portuguesa, Pinheiro Vicente conclui O Cordeiro de Deus com um gesto ousado que faz eco do seu uso da história da serpente em Onde o Verão Vai, deslocando o floreado alegórico do início do filme para o seu final. Em ambas as obras, a inocência é preciosa e frágil. Onde o Verão Vai é um monumento à sua beleza fugaz; O Cordeiro de Deus é uma elegia à sua perda, algo que acontece não de uma só vez, mas uma e outra vez à medida que os anos passam.
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