Corpo celeste
Catarina Alves Costa
15 de Janeiro de 2025

Alice Rohrwacher é uma das cineastas contemporâneas mais importantes do cinema independente actual, recuperando muito do que foi a tradição de um cinema italiano mais clássico, com a exploração de temas ligados à cultura popular, ruralidade, identidade comunitária e familiar, e busca espiritual. Ao invés de uma estética neo-realista, vemos neste cinema uma abordagem sensorial e poética com um forte cariz documental. Corpo celeste, a sua primeira longa-metragem, é um filme que transita justamente entre o realismo e o simbolismo, explorando a jornada de Marta, a protagonista, enquanto se adapta a um novo ambiente e enfrenta tensões entre manifestações de fé, um corpo em mudança e a busca pela identidade, por não se sentir fora do mundo. O filme é também um espelho das tensões sociais da Itália contemporânea, ancorando-se em temas como a ligação da política com a instituição da igreja, a religião, os rituais de passagem da infância para a adolescência e, por fim, a desconexão entre os valores tradicionais e a contemporaneidade.

O tema da infância surge neste primeiro filme como uma espécie de pretexto para um encontro com o lugar da câmara, que assim vê o mundo a partir de um espanto, dúvida, medo, estranheza. Nos filmes de Alice Rohrwacher, e esse aspecto está já aqui presente neste coming-of-age, as crianças ou jovens adolescentes constroem-se entre a inocência da infância e os dilemas existenciais que surgem ao longo da formação da identidade. Neste filme, as crianças são mesmo o centro das coisas, testemunhas e protagonistas de um mundo marcado por ambiguidades sociais, religiosas e familiares. Elas são figuras de transformação, imersas em processos de aprendizagem e descoberta, desacordo e alienação.

Em Corpo celeste, a personagem principal, Marta, tem 13 anos e depois de dez anos a viver na Suíça regressa ao sul profundo italiano, a Reggio Calabria, a cidade onde nascera. De volta a Itália com a mãe e a irmã mais velha, Marta inicia na igreja local o curso de preparação para o Crisma. A história coloca-a num momento de transição entre a infância e a adolescência, com todas as complexidades emocionais e sociais que essa mudança envolve. Assim, ao longo do filme, ela questiona a fé e os rituais religiosos que a cercam, como alguém em busca de uma compreensão mais profunda do próprio sentido da vida e do seu aspecto imaterial.

Rohrwacher não se limita a uma perspectiva romantizada da infância: as crianças e adolescentes frequentemente actuam como figuras sensíveis que experimentam o mundo de uma maneira diferente dos adultos, absorvendo, sem os entender, os dilemas e tensões do ambiente ao seu redor. Parecem, muitas vezes, ser mais conscientes das contradições e das dores do mundo em que vivem do que os adultos ao seu redor. Na verdade, estes são personagens que absorvem as contradições, os vazios e os dilemas que as instituições oferecem com uma sensação de desconexão e busca por pertença. O próprio título do filme, Corpo celeste, parece trabalhar uma metáfora tanto para a busca de transcendência quanto para a fisicalidade da existência humana. O corpo de Marta torna-se, assim, o palco de uma tensão constante entre a pureza da infância e a complexidade da adolescência.

A narrativa central gira então em torno deste curso que um grupo de jovens faz na Igreja para o Crisma. No entanto, as práticas religiosas tornam-se, para a protagonista, num exercício vazio de formalidade, uma série de gestos mecânicos que a afastam da vontade de ter uma experiência de fé genuína. Esse contraste entre os rituais e a vivência do sagrado reflecte-se no cenário da cidade, onde a religiosidade parece estar mais ligada à tradição e ao cumprimento de normas sociais do que a uma busca espiritual. O filme revela uma cidade cheia de baldios, túneis e passagens sem nunca a tornar exótica, mas antes revelando-a na sua decadência, na sua desordem de luz, vento e lixo, mas também de brilho luminoso. Há uma verdade no cenário que joga com a das personagens que o habitam.

Rohrwacher constrói um universo realista, mas a sua abordagem poética gera uma sensação de proximidade emocional com a protagonista, colocando o espectador numa posição de dúvida e busca. Corpo celeste é, antes de tudo, um filme sobre o despertar para a complexidade da vida e o processo de questionamento da realidade, subtil e introspectivo. Alice Rohrwacher, com um olhar minucioso sobre a realidade social, parece utilizar elementos documentais e etnográficos para investigar as complexas interacções entre as pessoas e os seus contextos culturais, além das tensões entre o sagrado e o profano, a tradição e a modernidade, revelando uma espécie de mundo perdido, que funciona na contemporaneidade como um espelho do mundo dos filmes de Vittorio De Seta, um mundo que sempre esteve cá e que recriamos pelo olhar da protagonista. Para usar uma palavra querida a Alice Rohrwacher, olhamos, sentimos, ouvimos as maravilhas de um mundo que está lá para ser ainda desvendado.

Catarina Alves Costa
Catarina Alves Costa é realizadora e antropóloga, doutorada pela na Universidade Nova de Lisboa com a tese “Camponeses do Cinema. Representações da Cultura Popular no Cinema Português”. Realizou, entre outros filmes, Margot (2022), Pedra e Cal (2016), Falamos de António Campos (2010), Nacional 206 (2009), O Arquiteto e a Cidade Velha (2004) e corealizou Um Ramadão em Lisboa (2019). É Professora Auxiliar da Universidade Nova de Lisboa e Coordenadora do Mestrado em Antropologia — Culturas Visuais e do LAV — Laboratório Audiovisual do Centro em Rede em Antropologia (CRIA). É autora do livro Cinema e Povo (2022, Edições 70).

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