Contra-Fluxos
Almudena Escobar López e Margarida Mendes
29 de Junho de 2023

“A canção da água é eterna.”

Federico Garcia Lorca


Tecendo espaços de trânsito, troca, e ritual, os corpos de água também escondem gestos de dominação e fugitividade, à medida que rios são extraídos e redirecionados. A sua frágil conectividade conta histórias de memórias intergeracionais e reverência, enquanto se tornam o meio e o refúgio da existência. 


Apresentando uma seleção de filmes de artista e documentários experimentais este programa assinala as práticas pessoais de realização de cinema enraizadas em espaços aquáticos onde acontecem rituais de pertença e ancestralidade, enquanto corpos, linguagem, e imagens residuais se fundem em atos de bênção, purificação, fugacidade e celebração. Ao fazê-lo, contrapõe modos de vida insurgentes e resilientes que iluminam formas mais recíprocas de proximidade. 


A erosão costeira e a subida das águas questionam os modos de soberania. Águas incertas que trazem à tona a vulnerabilidade de uma realidade distante que se torna próxima. Correntes de água silenciosas que fluem com violência no rio Mississippi, cheias ameaçadoras de tempos disjuntos que constroem o futuro. Forças gravitacionais da lua que trazem uma maré ritualizada e multilingue de sussurros e espíritos. Quedas de água húmidas que irrompem de dentro, abrindo a possibilidade à mudança. 


As fronteiras fluidas do cinema imiscuem-se pelos fotogramas, re-imaginando as condições do que sentimos e de como interagimos com isso. Estas águas cinematográficas são espaços de suspensão e abstração onde novas sensibilidades políticas serpenteiam, sem se imporem umas às outras. Entrando no espaço insone, habitado por imagens residuais e assombrações espetrais, os filmes apresentados incluem experimentações formais que incluem duplas exposições, colagens de arquivo e found footage, planos subaquáticos, e vídeos que abrangem a genealogia do aparato de captura e exibição, ele próprio uma entidade geológica. 


As obras que apresentamos documentam a vulnerabilidade dos seus sujeitos, simultaneamente testemunhando o fracasso do projeto do estado-nação no apoio às vidas dos que se encontram fora do centro, e a sobre-exposição à toxicidade e à rutura dos ecossistemas. São filmes que catalisam a esperança nos espíritos ligados à condição de apatridia, enquanto as condições atmosféricas de governança continuam a espalhar incerteza. Águas com almas que vão contra o fluxo das correntes do dia a dia. Mergulhando nos fotogramas, o tempo subaquático abranda o nosso corpo e abre a nossa mente. Estes filmes são espirais de Ekman[1] no fundo do oceano, pontos de entrada para uma temporalidade mais profunda que sempre esteve lá, subindo e descendo à mercê da lua. 


O pessoal e o coletivo entrelaçam-se com as ondas do oceano. Nadando dentro dos 530 anos de lágrimas e suor daqueles que pereceram sob o convés. Um cinema translúcido que pode ser cheirado na brisa e sentido com os olhos, apresentado no meio da praça depois de séculos de saque e desdém. Estes títulos são pensados em comum, sentidos do fundo do mar, e das costas daqueles que à distância estão mais próximos do que nunca. 


Estas ficções visionárias e rituais desenterram histórias de ocultação e ocupação, dando espaço a corpos desgastados pelo clima e perspetivas submersas. Apresentam histórias extrativistas de apagamento na América Latina e no Pacífico, correlacionando atos de mediação logística com fatiga elemental, ao mesmo tempo que contrastam a sobre-exposição de imagens com a erosão dos sistemas políticos. Afinal, como é que se catalisam esses processos de desterritorialização e expropriação de vida rumo a imaginações e futuros mais benéficos? 


Aqui, pela lente destes autores, visões em potência e perspectivas de mundo são renunciadas por atos de reinvenção política, por meio dos quais novos espaços vitais são construídos. São brechas promissoras para futuros comuns recém-visionados, imaginários insurgentes que avaliam a nossa relação com a crono-política, e propõem uma ética imaginativa para os vivos. Trazem consigo a possibilidade de conferir direitos às montanhas, rios, e entidades não humanas, à medida que as diversas vocalidades dos vivos persistem. Vozes que podem ter transdução através de montanhas e selvas, irrompendo e resgatando matérias que lhes estavam a ser sequestradas. Vozes que reverberam através dos fluxos turbulentos das marés, que falam da existência em deslocamento enquanto procuram novo fôlego. Vozes que recalibram os coros velados da sincronicidade do tempo geológico, evidenciados através da dança reprodutiva dos corais ao luar. 


A água flui, a água quebra, a água jura, a água vence. 


[1] A espiral de Ekman é uma consequência do efeito Coriolis, e dá-se quando as moléculas de água à superfície se movem pela força do vento, arrastando camadas mais profundas de outras moléculas de água.

Almudena Escobar López

Curadora independente, arquivista, e investigadora natural da Galiza, Espanha, é Professora Assistente de História do Cinema, Preservação Fílmica e Gestão de Coleções na School of Image Arts da Toronto Metropolitan University. O seu trabalho foca-se sobretudo em colonialismo e práticas artísticas que propõem formas alternativas de entender a territorialidade. É atualmente candidata a doutoramento no programa de Estudos Visuais e Culturais na Universidade de Rochester (Nova Iorque). Como curadora convidada, Almudena fez curadoria e co-curadoria em diversas séries de cinema e vídeo, apresentadas em sítios como Anthology Film Archives, Film Society of Lincoln Center, CineMigrante Argentina, Muestra Internacional Documental de Bogotá, UnionDocs, ICDOCS, Visual Studies Workshop, ou Cineteca Nacional de México.

Margarida Mendes

Investigadora, curadora e educadora, explora a sobreposição entre a teoria de sistemas, o cinema experimental, as práticas sonoras e ecopedagogia. Cria fóruns transdisciplinares, exposições e obras experimentais em que modos de educação alternativa e práticas de auscultação podem catalisar a imaginação política e ações restauradoras. Tem um envolvimento de longa data com ativismo anti-extrativista e ecopedagogia, colaborando com ONGs marítimas, Universidades e instituições do mundo artístico. Dirigiu diversas plataformas de educação e investigação e foi curadora convidada do programa de cinema na 11ª Bienal de Liverpool.

Batalha Centro de Cinema

Praça da Batalha, 47
4000-101 Porto
+351 225 073 308

batalha@agoraporto.pt

A enviar...

O formulário contém erros, verifique os valores.

O formulário foi enviado com sucesso.

O seu contacto já está inscrito! Se quiser editar os seus dados, veja o email que lhe enviámos.

FS Contra-Fluxos: Margarida e AlmudenaFS Contra-Fluxos: Margarida e AlmudenaFS Contra-Fluxos: Margarida e AlmudenaFS Contra-Fluxos: Margarida e Almudena

©2024 Batalha Centro de Cinema. Design de website por Macedo Cannatà e programação por Bondhabits

batalhacentrodecinema.pt desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile