Contemporânea Film(e): Sessão programada por Salomé Lamas
Sara Castelo Branco
10 de Janeiro de 2025

Salomé Lamas — Ecofeminismo

Derivando de um mesmo princípio perfilhado numa conexão íntima entre o mundo humano e o mundo natural, o feminismo e a ecologia partilham concepções e propósitos comuns, que frequentemente confluem em práticas que transpõem e desfazem sistemas de dominação e dualismos hierárquicos. Estes modos não-exploratórios de estabelecer relações sociais, ambientais e interespécies está na base do ‘ecofeminismo’, que propõe reverter imaginários de repressão e de alienação para potencializar novas relações entre humanos e outras formas de vida. Sob o signo deste pensamento ecofeminista, a sessão Contemporânea Film(e), com curadoria da artista Salomé Lamas, no Batalha Centro de Cinema, procura experimentar outras formas de entendimento mais éticas e justas, onde a ecologia e o feminismo se conciliam para desfazer opressões de género, classe, raça ou espécie.

O pensamento que ordena o ecofeminismo foi influenciado pelos movimentos feministas da década de 1970, que se enquadravam em parte em correntes ambientalistas e pacifistas emergidas nos anos 1960. O termo ‘ecofeminismo’ foi conceptualizado pela primeira vez pela escritora Françoise d’Eaubonne (1920-2005) no livro Le Feminism ou la Mort (1974), onde pressupunha que as mulheres seriam mais vocacionadas a incitarem uma revolução ecológica capaz de motivar uma nova estrutura relacional entre a humanidade e o meio ambiente. Neste sentido, as linhas mediais que orientam o ecofeminismo apoiam-se particularmente em duas correntes — o ecofeminismo essencialista e o ecofeminismo construtivista. O primeiro opera sob um pensamento alicerçado numa suposta essência feminina irredutível, que considera a mulher ontologicamente mais vocacionada para a preservação da natureza, considerando os seus atributos intrínsecos ligados à geração da vida ou às práticas de cuidado. Numa orientação inversa, o segundo recusa esta naturalização das características feministas para estabelecer a ideia de que os conceitos de género e de natureza são construídos em termos históricos e sociais. Esta corrente de pensamento ficou particularmente singularizada pela filósofa Simone de Beauvoir (1908-1986) que, em O Segundo Sexo (1949), expressa a ideia de que não se nasce mulher, mas torna-se mulher. Esta obra indicia portanto a noção de que a identidade feminina não pode ser circunscrita ao seu destino biológico, mas que a sensibilidade ecológica depende de diferentes factores sócio-temporais.

Aquando da sua estreia, o filme Dyketactics (1974) de Barbara Hammer (1939-2019) foi criticado pelo seu aparente essencialismo. Se, numa primeira parte, a obra efectivamente mostrava diversas mulheres nuas a vaguearem por entre uma paisagem natural, a actuação destes corpos femininos no ecrã contraria a objectificação produzida culturalmente em relação a estes. Em Visual Pleasure and Narrative Cinema (1975), a crítica Laura Mulvey (1941) usa o termo male gaze para definir um olhar masculino e heterossexual ligado a comportamentos como voyeurismo, escopofilia e narcisismo, que determinam uma cultura de representação cinematográfica das mulheres como mero objecto para suscitar o prazer masculino. Em Dyketactics, os corpos não procuram atrair este olhar, desalinhando este voyeurismo através de uma visualidade veloz e fragmentada sob o corpo feminino. Barbara Hammer foi pioneira no cinema experimental queer e feminista, tendo criado um trabalho inovador dedicado ao empoderamento do corpo da mulher e à eliminação de tabus relativos à sexualidade e à identidade lésbicas. Desta forma, Dyketactics é modelar na abordagem à identidade, ao desejo e à estética feminista, onde a percepção se liga ao sentido do tacto, emergindo aquilo que a artista chama de “dyketactic”: uma intervenção estética táctil, que cinge a sensualidade e a sensação à operação da visão.

Por meio de uma igual relação com o corpo feminino, que aqui se desenrola através de uma perspectiva que envolve o envelhecimento, a sororidade, a ecologia e a temporalidade, o filme Augenblick (2017) de Vivienne Dick (1950) principia com a imagem digital de uma rocha, um glaciar e uma cascata derretidos, para transitar depois até às palavras iluministas de Jean-Jacques Rousseau, e, posteriormente, mostrar um grupo inter-geracional e inter-racial de mulheres que discutem literatura, dieta, filosofia e canibalismo. Vivienne Dick é uma figura central na cena vanguardista ‘No Wave’, ao desenvolver um trabalho pioneiro e altamente pessoal ligado à cena punk underground nova-iorquina e à exploração radical da política de género. Augenblick partilha assim parte deste universo que constitui o trabalho de Dick, bem como o interesse marcado do ecofeminismo pelo mundo mais-que-humano ou além-do-humano, isto é, por uma existência compreendida como um todo de relações que se revê nas lutas raciais, de género e de sexualidade.

Se um dos princípios do ecofeminismo apoia-se justamente no cruzamento de opressões ambientais e femininas, cumpre também expressar que a experiência globalmente partilhada ligada à destruição da natureza não é sentida de forma igual em todos os locais, uma vez que as alterações climáticas penetram e aprofundam a discriminação assimétrica que existe no planeta. Se no hemisfério Norte, a maior parte dos debates centram-se em torno do produtivismo e do consumo excessivo; no hemisfério Sul, as discussões convergem para os direitos humanos básicos, como a segurança alimentar, a água potável, o saneamento ou a inexistência de meios de subsistência. Partindo desta desconformidade ecológica, o filme Deep Weather (2013) de Ursula Biemann versa como as nossas acções têm um impacto directo nos diversos sistemas complexos do planeta, dando continuidade à prática desta artista e autora, cuja obra é fortemente orientada para a investigação e envolve trabalho de campo em locais remotos, onde tem investigado as ecologias do petróleo, do gelo, das florestas e da água. Deep Weather principia com a imagem de uma enorme zona de extracção industrial na região de areias petrolíferas de Alberta no Canadá, exibindo imagens aéreas que revelam uma paisagem devastada pela mineração agressiva; passamos depois para milhares de quilómetros de distância, no Bangladesh, onde se desenvolve um desmesurado esforço comunitário na construção de diques de protecção para evitar inundações, que une milhares de pessoas que trabalham em conjunto para se protegerem da subida do nível da água. O filme nivela visualmente locais que, embora em partes opostas do planeta, sofrem (mesmo que de forma desproporcional) com as mesmas acções nocivas que imperam nos nossos ciclos planetários.

Na obra Feminism and the Mastery of Nature (1993), a filósofa Val Plumwood (1939-2008) afirma que a origem da crise ecológica está no que designa por “modelo dominante dualista”: no pensamento da cultura ocidental, a identidade humana teria sido definida em relação ao género masculino. Plumwood crítica este sistema hierárquico de significação, que polariza e irreconciliza dualidades como homem e mulher, ou, humano e natureza. De acordo com a autora, a refutação deste dualismo não deverá resultar da aniquilação da diferença, mas sim de uma enfatização desta, que assim poderá afrontar a polarização e a hierarquia das identidades. Plumwood afirma portanto que o ecofeminismo é profundamente integrador ao concertar diferentes práticas de sensibilização social. Esta ordenação acolhedora do programa ecofeminista conforma a trilogia de filmes Who is Afraid of Ideology? (2017-2020) da artista e investigadora Marwa Arsanios (1978), onde as concepções de colectividade e resistência manifestam-se como estruturas que ordenam um activismo ecológico vinculado às lutas das mulheres e aos direitos às terras indígenas. Através de experiências femininas no Curdistão, na Colômbia ou no Líbano, Arsanios confronta sistemas políticos e socioeconómicos de opressão e de exploração, vinculando-se a formas alternativas, colaborativas e de auto-defesa face à lógica capitalista de exploração da terra. A terceira parte desta trilogia, Part III Micro Resistances (2020), interpela um grupo de mulheres agricultoras indígenas da região de Tolima, na Colômbia, que se dedicaram a proteger e a preservar sementes nativas através do seu conhecimento ancestral de cultivo e de cuidado, defendendo assim as suas terras contra empresas trans-nacionais. Este filme particulariza-se pela forma como retrata o vínculo da terra com o corpo indígena — seja pelo conhecimento nativo dos seus elementos, ou pela violência de um corpo que após o seu assassinato se inscreve na terra, tal como anuncia a abertura do filme ao retratar a forma como as fronteiras entre o cadáver e o solo se mesclam através de culturas bacterianas partilhadas. Trata-se sempre de uma forma de resistência — quer das comunidades que resistem às pressões político-económicas sobre a terra, como dos próprios corpos que resistem como memória nela.

A trilogia de Arsanios apela assim a que se considere a possibilidade de resistir colectivamente à exploração do capitalismo patriarcal, que de forma igual representa frequentemente as mulheres como objectos de consumo, meios de produção e recursos de exploração. É justamente parte do percurso desta subjugação feminina (na transição ocorrida entre o chamado período feudal e o capitalismo) que está na base do livro Calibã e a Bruxa (2004) da historiadora Silvia Federici (1942), que aborda parte da Idade Média europeia, analisando como as mulheres realizavam funções tidas posteriormente como masculinas, detendo identicamente um maior poder social em consequência do domínio sobre a sua actividade reprodutiva e o conhecimento de plantas medicinais. Todavia, a origem do patriarcado capitalista conduziu à expulsão das terras e à exclusão do seu trabalho da esfera do mercado, levando a que as mulheres perdessem o acesso a meios de subsistência, tornando-se economicamente dependentes dos homens. Juntamente com a colonização e a escravidão globalizada, a autora afirma que esta diminuição do poder das mulheres influenciou a emergência do antropoceno, dado que, entre outras coisas, levou à supressão de formas autónomas de conhecimento da natureza e de relação com o não-humano.

As consequências destrutivas do sistema capitalista operam identicamente no filme Free Fall (2010), onde a artista Hito Steyerl (1966) reconstitui a circularidade nociva entre economia, violência e entretenimento na época do capitalismo globalizado. Steyerl é uma cineasta, artista e escritora, cujos principais temas de trabalho envolvem a tecnologia, a circulação global de imagens, e, a crítica pós-colonial e feminista à lógica representacional. Em Free Fall, a artista incorpora uma série de obras — After the Crash, Before the Crash e Crash — que utilizam como cenário cardeal um ferro-velho de aviões no deserto de Mojave na Califórnia, para evocar a então recente crise financeira de 2008. O proprietário do ferro-velho explica que as companhias aéreas armazenam os seus aviões neste local durante períodos de crise económica, quando se torna inútil pilotá-los: “a economia está numa situação viciosa, explosiva”, acrescentando que os aviões são “todos fantasmas”. O paradigma central do filme está na forma do Boeing 4X-JYI, um avião adquirido pela primeira vez pelo realizador Howard Hughes para a TWA, que foi posteriormente pilotado pela Força Aérea israelita, até chegar ao deserto da Califórnia e ser explodido no blockbuster Speed (1994). A representação da vida post-mortem destas máquinas torna-se aqui um símbolo do declínio económico, que revela ciclos de adaptação do capitalismo à mudança do estatuto da mercadoria, mas também a possibilidade de um outro futuro.

Comprometendo formas alternativas e relacionais de interpretar o mundo, o ecofeminismo tem a potência empática de reconcentrar e activar um conjunto de relações, entre outras coisas,natureza enatureza, frequentemente advindas  e perspectivas de respeito pela natureza, frequentemente advindas do trabalho colaborativo ou da coligação interespécies. Estes filmes potencializam, portanto, a co-construção de um possível outro mundo, em que se desfazem as práticas de dominação para se desenvolver aquilo que Donna Haraway designa em Staying with the Trouble (2016) por devir-com.

Batalha Centro de Cinema

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4000-101 Porto
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