Contemporânea Film(e): Sessão programada por Gabriel Abrantes
Rômulo Moraes
15 de Setembro de 2024

Deve haver boas razões para o cinema ‘de arte’ contemporâneo ignorar em tão grande medida a potência estética do humor. Primeiro, talvez, porque o humor sugere uma forma mais baixa de cultura, do campo do entretenimento, aquém de um cânone que esse cinema ainda precisaria projetar visando sua legitimação museológica. Segundo, talvez, porque o engajamento com o humor é visto com desconfiança pelos críticos e acadêmicos desse cinema de arte, como se fosse uma armadilha, um truque para enganá-los e levá-los a analisar com ponderação algo que desde o princípio ridiculariza qualquer possibilidade de análise (ou seja, ridiculariza os próprios acadêmicos). Mas o ethos contemporâneo é tão infundido pelo humor e pela profunda estupidez que origina, dos efeitos psico-políticos dos memes à dimensão ético-discursiva dos stand-ups, que a risada parece hoje imperativa não só para o cinema de multidões como igualmente – e até mais – para esse cinema que pretende se opor a ele.

Os quatro filmes selecionados por Gabriel Abrantes para a primeira sessão da revista Contemporânea no Batalha Centro de Cinema problematizam intensamente o esquema de jogo do humor. São filmes de arte, filmes experimentais, que em vez de temerem a graça e a estupidez, as exaltam. São filmes de ridículo e de baixeza, e que por assim serem revelam o nosso ridículo e a nossa baixeza, enquanto indivíduos e enquanto sociedade. Dois dos filmes selecionados por Abrantes, PVC Feces Rig Tour (2022) e Mediums (2017), satirizam abertamente certas estruturas sociais contemporâneas em sua predisposição ao absurdo. Os outros dois filmes, The Glorious Acceptance of Nicolas Chauvin (2017) e o pequeno excerto de If I Had a Million (1932), exploram o humor como ferramenta de construção histórica e de resistência social a essas mesmas estruturas do absurdo. Mas, acima de tudo, são filmes hilariantes, que querem fundamentalmente fazer contrair a barriga dos seus espectadores em espasmos que talvez nem eles saibam explicar.

Alguns ramos teóricos da filosofia embasam o que sabemos hoje sobre a lógica do humor, abstratamente entendida. A primeira, hobbesiana, é uma "teoria da superioridade", de acordo com a qual riríamos da inferioridade do outro em relação a nós mesmos, pelo contraste entre o constrangimento e inadequação do outro e nossa própria impressão de autonomia e normalidade. A segunda teoria, ensaiada pela filosofia alemã do século XVIII (Kant e Schopenhauer particularmente), é uma "teoria da incongruência", de acordo com a qual o humor emergiria de uma experiência de justaposição paradoxal entre um objeto e sua representação. A terceira teoria, descrita por Bergson em um livro curto de 1924 (até hoje o mais sério tratado sobre a graça), expande essa segunda noção idealista para estipular uma compreensão mecano-vitalista do humor, que para o autor seria gerado, nesse caso, por uma tensão subitamente suspensa, que, desfeita em vácuo, se abrisse para sua contraparte: a estranheza e o frescor de um desarme.

A arte sempre teve nesse desarme, na incongruência e na diferença do humor, uma arma. Desde Aristófanes, que venceu com sua consciência escatológica a ironia metódica de Sócrates, até Rabelais, que moldou do Carnaval uma metafísica do grotesco, e depois até Swift e Sterne e seus manuais avant la lettre de emancipação da etiqueta vitoriana inglesa. O primeiro livro de piadas do mundo, o Filógelos, um compêndio coletado por Hierocles e Filagrios na Grécia do século IV, permitir-nos-ia até mesmo produzir uma arqueologia da presença espectral do humor na literatura universal. Ele está lá nas marginálias dos manuscritos medievais, nas personas do bardo e do bobo-da-corte, nos ambientes abertos dos circos, catch clubs e teatros de variedade. Ou seja, em tudo que antecipa o cinema, tanto em suas pretensões recreativas quanto em seu legado crítico. Em certa medida, o cinema é ele próprio a habilidade de gravar, estocar e distribuir o tipo de humor popular que flutuava de boca a boca nesses espaços periféricos. Se o cinema e a modernidade são intercambiáveis, como argumenta, entre outros, Paul Virilio, é porque ambos permitem a oficialização de certos regimes de ejeção libidinal, na industrialização dos produtos de convívio humano e desenvolvimento de uma retórica pública de ironia através dos media de massa.

Os filmes selecionados por Gabriel Abrantes são filmes de arte, propriamente modernos, porque cômicos, e não apesar de cômicos. Eles fornecem novos temas para o cinema de arte também para fazê-lo maturar na síntese, exigida de toda grande arte, entre o popular e o erudito. Como quem substituísse o belo e o sublime do cinema que se pensa arte apenas por ser sério por categorias estéticas mais pertinentes a um cinema que se pensa arte porque de fato se historiciza. Categorias como o estúpido e o absurdo. Se o belo é o prazer desinteressado e universalmente reconhecido, não pode a estupidez ser entendida nos exatos mesmos termos, justamente por buscar fazer rir a quem quer que seja? Se o sublime é a mistura do prazer com o desprazer que supera qualquer reconhecimento e se direciona ao ilimitado, não poderíamos considerar o absurdo a forma mais acessível dele? Mas o cinema não precisa escolher entre o primeiro e o segundo par de conceitos. Como toda grande arte já devidamente madura, e como Abrantes parece entender bem, o cinema pode sem dificuldades conjugar simbioticamente o belo e o sublime ao estúpido e absurdo.


Ou então é como se esses filmes fizessem do belo e do sublime compatíveis com a figura do idiota, que habita e condiciona secretamente tanto o estúpido quanto o absurdo. Quer dizer, para além do problema do humor, os quatro filmes trazem ao centro da exibição o problema da burrice humana, que segundo Deleuze é o problema do século. De fato, não sabemos medir a burrice; os testes de parametrização lógica e Q.I. são até parte constituinte dela, amados e glorificados pelos mais completos burros que conseguimos encontrar. Pois a burrice, bem-entendida, não é meramente a inteligência de baixa intensidade, mas a incapacidade de enquadrar diferentes sistemas de pensamento da realidade—diferentes inteligências—para a elaboração de uma nova (ou seja, é a própria a vontade de usar um teste de Q.I. como medidor de inteligência). Típica do contemporâneo é essa dificuldade para fazer modelos ressoarem entre si e reorientarem-se um ao outro, para flexionar os modos-de-vida e encaixar criativamente tudo o que vem à mão. Coisa que o humor, mesmo em seu mais estúpido rumor, faz com facilidade, pela transgressão das convenções e tabus e abertura demente ao Novo.

Na verdade, a rigor não sabemos nem mesmo o que é a inteligência. Os filmes selecionados por Gabriel Abrantes, por exemplo, parecem inteligentes na sua meta esquematização da estupidez. No seu uso de uma linguagem paralela à linguagem, nas suas dinâmicas por vezes irracionais, por vezes bizarras, sempre além da prognose. Os filmes são inteligentes porque seu humor quebra a expectativa de unidimensionalidade em cada cena: a gravidade burocrática de um funcionário prestes a se demitir estourando de repente no trepidar da sua boca em If I Had a Million (1932), o vlog caça-cliques convertido bruscamente ao horror íntimo-biográfico em PVC Feces Rig Tour (2022), os textos governamentais como índices de uma poesia subversiva originada do acaso em Mediums (2017), os desvios de curso e anacronismos inevitáveis à estabilização de símbolos nacionais em The Glorious Acceptance of Nicolas Chauvin (2018). O elogio da burrice não é, ele próprio, burro, porque não sofre daquela ausência de passagens interfásicas que caracteriza tão visivelmente a burrice. Há, pelo contrário, em cada um deles, uma intuição ampla de como cada conceito pode ser angulado e aprofundado, mesmo os mais aparentemente ignorantes.

A bela estupidez e o sublime absurdo, a sublime estupidez e o belo absurdo, é isso que é comum aos quatro filmes selecionados por Gabriel Abrantes. Porque o humor deles filtra a experiência humana ao seu denominador comum, aplainando escalas, uma atrás da outra; porque os quatro filmes negam de imediato as obviedades inverosímeis da inteligência; porque seus personagens são broncos, viris, controversos, e anteriores a qualquer convenção, ou seja, são de uma franqueza quase fantasiosa, que pode criticar a tudo; porque suas montagens quebram nossas tentativas de intelecção do acontecível, nossos vicejos de prever o próximo passo do diretor ou avançar sobre as micro-temporalidades da imagem; porque suas narrativas "escrevem com a cegueira", como nos recomenda Cixous, dizendo sem se fixar numa só rede sígnica do dizer, mas antes buscando mesmo a rutura, a zona morta por trás da vista, onde cada observação já é desfazimento. Essa burrice auto-admitida implica algo politicamente, é claro, como o retrato de um chauvinismo fictício deixa evidente. Peter Sloterdijk, em sua longa digressão sobre Weimar, define o homem daquele tempo como "homo stultus", aquele que se define pelo cinismo, que é a burrice enquanto defeito moral. Entretanto há também na burrice um aspeto ideologicamente redentor; por exemplo, na capacidade de suspender consensos e levar liberdades às últimas consequências ou de subentender até mesmo as verdades que não estão lá.

Em um fragmento de 1922, Walter Benjamin registrou que "a estupidez vem, em última instância, de analisarmos ideias de perto demais". Há algo de estúpido também, é claro, neste texto. Na análise tão detida de elementos cinematográficos tão esdrúxulos, escolhas tão picarescas, que de fato despistam ativamente seu analista. Que alívio admiti-lo! Mas melhor analisar comicamente uma sessão de cinema cômico que capitular à decisão mais esperta (e por isso mais agudamente boçal) de subtrair da sessão toda comicidade, como se ela fosse mero acessório aqui e não seu foco elétrico, seu âmago estético-existencial.

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