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Contemporânea Film(e): Este lugar não existe
João Maria Gusmão
29 de Março de 2025

Em 1968, Herberto Helder incluiu um poema na Apresentação do Rosto (edição apreendida pela censura) posteriormente revisto, coligido e finalmente editado no livro Vocação Animal de 1971, cuja primeira estrofe é:

 

“Este lugar não existe, fica na Arábia Saudita, no deserto.”

 

Mais tarde, este texto será suprimido da obra completa do poeta (Poesia Toda), pelo próprio autor. O episódio que leva a essa decisão é descrito num fragmento intitulado “(magia)” (Photomaton & Vox, 1979). Nele, Herberto Helder explica como assistir à adaptação cinematográfica desse mesmo poema o levou a renegar a obra.

 

“Comecei a ver e a assustar-me. Era um belo filme, e excedia o meu poema em vários sentidos e proporções. Talvez seja de esclarecer que a película revelava certas intenções esconsas do poema e fazia desabrochar, de maneira perturbadora, algumas das suas imagens. E de tal modo que comecei a entender o texto através da leitura do cineasta, e a verificar que as minhas palavras, e a forma de pô-las, passavam a ficar atingidas por um erro incorrigível, uma espécie de ineficácia própria. A eficácia que deveria pertencer ao poema deslocara-se completamente para o filme. Assim a metáfora ou o símbolo que era o poema, de súbito ausente, passara a existir com a força toda, e apenas no filme. Eu fora desapossado do lugar, do poema, e então decidi nunca mais considerar esse texto como meu.”

 

Coincidentemente, a primeira estrofe do poema — “Este lugar não existe” — transformara-se em Este poema não existe [1], permutado por um filme maldito, segundo consta, um filme da autoria de Leopoldo Criner que aparentemente pouca gente viu ou tem memória.

        

Relevante dizer, que o famigerado poema releva de um carácter marcadamente genésico: “Dividi-me em sete dias. (...) primeiro, criei os céus e as areias daquele lugar que não havia./Depois os dois luzeiros: um para o dia e o outro para a noite do deserto...”, demiúrgico e profético, o texto é ao mesmo tempo profundamente profano, “Levei tábuas e pregos./Ferramentas,/as belas ferramentas dos homens.” Construções, elucubrações, uma obra herética autorreferencial, fabricada pela linguagem e consubstanciada na palavra, a origem e destino do poema essencial depois da morte de Deus. Irrompe, porém, na ordem das visões do poeta, o provir da humanidade, “lancei à minha volta (as sementeiras)/o futuro nascimento,/e fiquei no meio do nascimento,/cercado pelo futuro nascimento.” Instaurando o sinistro nessa claridade, um pesadelo surrealista: “Porque principiaram a sair da areia na tarde do sétimo dia, e floresceram, sombrias e doces cabeças de criança — era terrível.” O poema faz-se poema — ex nihilo, a partir do nada, desse lugar que não existe, no deserto. Poema Verbo. Até soçobrar agudo, precipitado na profusão de pequenos nadas gigantes, a emergência do “outro” absoluto, infinito e irredutível, assustador.

 

Os quatro filmes agora convocados para este cinematógrafo (Let Each One Go Where He May, de Ben Russell, 2009; China Not China, de Dianna Barrie & Richard Tuohy, 2018; Beijing 88, de Rose Lowder, 1988-2011; Sack Barrow, de Ben Rivers, 2011) sugerem a dissolução material e simbólica dos lugares que referenciam.

Não se trata, porém, como na poesia de Herberto Helder, de instaurar um espaço primevo (“um lugar que não existe”) no âmbito da ficção poética para subverter a realidade num real metafísico. O conteúdo metafórico desta injunção de títulos, opera precisamente no sentido oposto ao do poeta, ex nihilo nihil fit, nada surge do nada. A dimensão apofântica do mitologema do poema está ausente da objectividade ou até da realidade prosaica que assombra o cinema destas paisagens.

Estes filmes não despertam sensibilidades crísticas. As figuras humanas entram e saem dos planos como figurantes de lugares a que não pertencem, mas aos quais, por inerência — por simples indexação, inscrição, registo —, deveriam pertencer. Essa circunstância de desencontro entre o próprio sujeito e o espaço próprio (“apareço na imagem, mas não estou neste filme”) instaura a produção e a articulação de sequências de planos não-diegéticos que, ao discorrerem sobre essa aparente insignificância da figura dentro da imagem, conjecturam uma tangibilidade factual de outra ordem. “Ser, ou não ser”, pergunta antes, “Existo, ou não existo”, como interrogação material, espectral — o fantasma, de hoje e de agora, e não o fantasma imemorial de todos os tempos.

Nestes filmes não há narrativa porque os figurantes não desempenham um papel ou seguem um guião normativo. Contudo, se não contam uma história, é manifesta a sua exclusão histórica. São pessoas que vagueiam num palco onde todas as atenções estão voltadas para a grande imagem — the big picture. A natureza destes filmes implica uma noção espácio-temporal específica que acentua, codifica e reflecte sobre essa despersonalização. A câmara e a montagem obedecem, na sua maioria, a estratégias do cinema estruturalista, onde a forma latente do filme (ou seja, a estrutura predeterminada que acomoda as imagens) prevalece sobre o seu conteúdo explícito (o que as imagens captam em particular). O seu teor, passa a ser as condições predeterminadas que dão origem à captação das imagens — the big picture in a small frame.

Neste conjunto de obras, esta operação não se desliga do compromisso que os autores assumem em relação à realidade socioeconómica, são obras relacionais, reflexivas e proposicionais, que desvelam um esvaziamento da função de indexação, uma espécie de vertigem que consiste na subtil declinação dos seres figurados nas imagens — o verdadeiro assunto destes filmes — este lugar não existe porque não há condições para haver sujeito, somente para nada serem em lugar nenhum.

Se esse sentido resulta da acumulação de material cinematográfico, da duração não-diegética, do silêncio das vozes e das imagens figuradas, revela-se também, conceptualmente, como imagem-cérebro do retrato que transporta os destinos históricos dos transeuntes desses lugares para uma certa irrealidade, para um mínimo total de existência.

No seu conjunto, questiona-se em que medida a coexistência dos povos tolera a autodeterminação dos sujeitos como noção inalienável do espírito e do corpo; como as liberdades entram em colapso perante ordens simbólicas supranumerárias, excedentárias e superlativas.

Estes quatro filmes propõem uma observação entre vários processos históricos em curso que se interligam, pressagiando um futuro criminoso e injusto — processos que nunca estiveram provavelmente tão cristalizados como agora:

A questão da migração e controlo de fronteiras, desencadeada pela brutal desigualdade na distribuição da riqueza e emergência de um novo proteccionismo:
Let Each One Go Where He May

A deslocalização e obsolescência dos meios de produção, a alienação da força de trabalho pelos efeitos da macroeconomia, da globalização do capital e da especulação financeira:
Sack Barrow

O colapso ideológico dos grandes projectos colectivos do século XX e da organização que vigorava desde o pós-guerra, a justaposição de blocos na geopolítica e a disputa de interesses estratégicos:
Beijing 88

As indefinições e o expansionismo territorial das agendas imperiais na competição por recursos e vantagens:
China Not China

Todos estes problemas confrontam-se com tensões subterrâneas — espectrais — o passado colonial, a hegemonia cultural e o trauma; e forças de superfície — económicas — a acumulação de capital, o princípio da mais-valia e especulação financeira.

O que aqui apresentamos não se propõe resolver ou negociar a natureza destes antagonismos. Pregar aos convertidos não pode, de forma alguma, transformar a experiência estética num depositário da boa consciência. Isso só tem um nome: hipocrisia.

Aqui, descreve-se, restando apenas o que temos.

Recuperando o poema de Herberto Helder: um lugar que não existe é precisamente aquilo que é.

[1] Leonardo Chioda, 2019, “Este poema não existe: um caso de intermidialidade (e magia) em Herberto Helder”, Revista do CESP, Belo Horizonte.

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