“Um sonho lindo que acabou…”
A Confederação (1977), de Luís Galvão Teles, filme inspirado num conto de Amadeu Lopes Sabino, é uma espécie rara na cinematografia portuguesa, já que se inscreve no género de ficção científica. Ora, para além de alguns filmes de António Macedo, o cinema português evitou este caminho até muito recentemente.
A acção passa-se num futuro imaginário, num país que percebemos ser Portugal, em versão distópica, formado por uma confederação de estados, Norte e Sul, cada um com exércitos e canais de televisão próprios, que asseguram a ordem e a obediência graças a uma forte repressão e uma eficaz propaganda. O enredo centra-se em Lisboa, cidade vigiada e militarizada, onde Maria e António, funcionários do regime, vivem uma relação amorosa subversiva, usando como senha para os seus encontros “a confederação é um peixe podre”. O ponto de partida é engenhoso, porque é a televisão oficial que, no meio da avalanche de comunicados oficiais, decide apresentar o filme A Confederação, com o objectivo de “curar” a população do que designa “desvios esquerdizantes e anarquistas”.
É óbvio que estamos perante um cinema militante e de intervenção, em que toda a vertigem do PREC (Processo Revolucionário em Curso), que se seguiu à Revolução de Abril, é convocada e reflectida através de uma colagem de imagens e sons documentais da época, do recurso à banda desenhada de Jorge Varandas e da ficção cinematográfica propriamente dita. A perspectiva é claramente a da esquerda marxista e revolucionária, que acreditava no cinema como motor de transformação política e social e, por isso, este filme traduz as frustrações de todos que viram as suas utopias/distopias derrotadas no golpe militar de 25 de Novembro de 1975, visto como uma vingança contra-revolucionária e que poderia originar a sociedade inventada neste filme.
Um dos aspectos mais interessantes é estarmos perante um documento de uma geração impaciente por fazer um combate revolucionário por um país diferente e usar nessa luta o cinema. Esta obra foi produzida por uma cooperativa, a Cinequanon, e envolveu toda uma variedade de artistas de diferentes áreas e de intelectuais muito activos politicamente nos anos 70. Claro que tudo resulta num tom panfletário, ideologicamente simplista, sem grande complexidade e questionamento. Privilegia-se o uso das imagens e dos sons “verdadeiros”, com a omnipresença do microfone das reportagens e notícias televisivas. Para muitos isto pode traduzir-se numa certa desvalorização da estética cinematográfica e penso que esta versão distópica não explora a força subversiva do amor de Maria e António perante a máquina totalitária, o que poderia ser a âncora do filme. Os protagonistas insistem em ser lugares de fala dos princípios ideológicos revolucionários.
Mas esta colagem com imagens e sons, que por vezes se atropelam de forma pouco coerente para os olhares actuais, faz sentido para todos os que viveram e /ou conhecem bem aquele período conturbado, os que conseguem dar coesão ao filme. Percebemos os fantasmas que nos assombram, os do fascismo com as suas figuras simbólicas, o general, o juiz e o cardeal, os das utopias que tantos acharam possíveis após Abril, os do PREC e da possibilidade de uma guerra civil e, no fim, quando Novembro aqui chegou, os da derrota dos sonhos revolucionários. Este é um filme de uma peregrinação dolorosa e de uma ressaca pós-revolucionária.
E é impossível não sentir a força estética e política das imagens documentais do período revolucionário e da belíssima banda sonora, cujo tema principal, “Eu vi este povo a lutar”, é de José Mário Branco e o “Hino da Confederação" da autoria de Sérgio Godinho e de Fausto. A força política da canção de intervenção não esquece a qualidade artística musical e poética. E é com a música que a esperança nos surpreende no fim, quando a emissão televisiva é abruptamente interrompida com as imagens de um povo em luta e irrompe a frase “O povo é que faz a História”, subtítulo deste filme. Rever A Confederação é recordar as memórias de infância e juventude para muitos que passaram este período em famílias e meios politizados e com amigos dos dois lados da barricada. Essas memórias foram, entretanto, trabalhadas por filmes, documentários, músicas, formações académicas e, sobretudo, pelo tempo que nos obriga a um distanciamento crítico. Serão capazes de analisar as contradições naturais de um processo revolucionário, em que esperanças, medos e projectos políticos se enfrentaram e em que utopias/distopias deram lugar a uma normalidade democrática, símbolo de vitória para uns e de derrota para outros, mas isso não impedirá de sentirem, igualmente, uma certa emoção perante a voz militante presente neste filme, o que faz dele um documento precioso para entender o lado dos que se sentiram os derrotados dos sonhos revolucionários utópicos (e muitos distópicos, insisto) de Abril.
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