Curadoria de Ana David, Maria Ferreira e Tabitha Thorlu-Bangura.
Diz-se do cinema que é uma máquina geradora de empatia. O mesmo entendimento pode ser aplicado à experiência de ouvir música com outras pessoas. Mais ainda se a dançarmos coletivamente. Tendo a ciência provado que as fronteiras entre seres humanos se esbatem quando se movem de forma semelhante ao mesmo ritmo, conclui-se que dançar numa pista de dança intensifica a ligação com os que nos rodeiam. O mesmo, argumentamos, não é identificável na experiência da sala de cinema. Podemos todos sincronizar batimentos cardíacos perante os minutos iniciais de Saturday Night Fever, quando John Travolta se passeia com uma autoestima masculina retumbante — Bee Gees a tocar em fundo —, mas sentimo-nos tão ligados à pessoa sentada ao nosso lado quanto à pessoa atrás de nós na fila do supermercado. E, no entanto, à saída da sala de cinema, compreendemos melhor Tony Manero, e empatizamos com a sua missão de vida de se tornar o rei da pista de dança.
A música de dança [dance music] e a cultura de clube [clubbing] estão intrinsecamente ligadas à autodescoberta e às mudanças sociais. Este programa, que atravessa diferentes subgéneros musicais, meios sociais e geografias, celebra essa interdependência. Filmes como Saturday Night Fever, propositadamente aqui ausente, retrataram a libertação, a autoexpressão e o sentimento de pertença que as discotecas oferecem, ecoando diferentes movimentos contraculturais e agitações sociais de cada década. Mais recentemente, também o documentário se debruçou sobre o fenómeno global da produção e consumo de música eletrónica, refletindo sobre as forças emancipatórias do clubbing, bem como sobre os aspetos hedonistas da rave.
Em Young Soul Rebels, de Isaac Julien, mundos colidem: Chris e Caz, dois jovens DJs negros, dedicam-se a conquistar um espaço para a soul num Reino Unido de 1977 tomado pelo reggae, disco e punk. A sua moral filantrópica é que estes géneros musicais podem coexistir, isto é: pessoas negras e brancas, gays e heterossexuais partilham mais mundividência do que imaginam.
Foi a pioneira modelo negra Bethann Hardison que afirmou que “o beat do disco foi criado para que os brancos pudessem dançar”. The Last Days of Disco, de Whit Stillman, situado no início dos anos 80, um pouco depois do auge do disco, trata da malaise dos jovens e privilegiados: recém-licenciados desesperados por saber onde e com quem se vão integrar. Para a maioria, a discoteca era um espaço de liberdade; para Alice e Charlotte, é o palco da ansiedade social caracteristicamente yuppie.
A música de dança tem a capacidade de se reinventar constantemente. No entanto, nas palavras de Jeremy Deller, “não se tem dado à música eletrónica o crédito merecido por ser um motor de mudança e da cultura jovem”. O seu Everybody in the Place: An Incomplete History of Britain 1984–1992 enquadra o fenómeno da rave e o acid house no Reino Unido dos anos 80 como um acontecimento sísmico na cultura pop, “um dos últimos grandes movimentos juvenis”, afirma o artista.
Espaços de coesão social criados pelas e para as comunidades negras, latinas e LGBTQI+ foram o motor do nascimento e propagação da música de dança. Antes do mundialmente famoso Studio 54 de Steve Rubell, houve o pioneiro Paradise Garage de Larry Levan e, antes dele, o underground The Loft de David Mancuso. Shakedown, estreia na não-ficção de Leilah Weinraub, é uma ode às possibilidades e à importância da invenção desses espaços de prazer: o Shakedown em L.A. era um clube de striptease clandestino onde, durante os anos 2000, as mulheres puderam ser livres, negras e lésbicas.
O desejo e a música estão no centro de Clubbed to Death (Lola), de Yolande Zauberman, o título-descoberta do ciclo. O desejo de Lola por Emir leva-a ao excesso da dança e ao prazer do transe, aqui filmados inebriadamente num décor não desconhecido ao público português — o Convento do Beato, em Lisboa, tornado numa catedral do techno. Estas personagens não contam as suas histórias, mas evidenciam os seus sentimentos através da sua sensualidade. O seu corpo é tudo o que são.
“É como se todos nós soubéssemos, no fundo das nossas almas, que a nossa geração vai testemunhar o fim de tudo”, diz Dark, de 18 anos. O medo de um iminente apocalipse, o omnipresente desejo sexual, e a eterna procura do amor impelem os adolescentes pansexuais e indisciplinados de Nowhere, filme de culto de Gregg Araki, numa verdadeira montanha-russa de crises pessoais, sejam elas maníacas ou melancólicas.
A consciência de que nada é para sempre permeia toda a história da música de dança. Novos géneros surgem das cinzas de outros que se estão a dissipar. Clubes, que foram definidores para uma cidade, um dia também encerram portas. Sendo a homenagem o gesto-cerne de tudo o que o ciclo propõe, propõe-se a rememoração do clubbing na cidade e no país. O imenso arquivo de filmagens feitas por Manuela dos Campos, nos últimos 26 anos, das movimentações noturnas do Porto servirá de base a um novo vídeo da artista, Cool Strangers in the Night, focado nos muitos espaços que já não existem. Paralelamente, o cinema português faz a sua aparição noturna através de um convite à cineasta Mariana Gaivão, que apresentará um novo trabalho, RPM: Revoluções por Minuto — uma viagem pelas cenas de clubbing do cinema feito em Portugal, com uma partitura eletrónica interpretada ao vivo por Violet.
After Hours: Clubbing no Cinema é um convite à dança. O direito a uma vida noturna é universal, seja numa pista de dança ou numa sala de cinema, sentados ao lado de estranhos.
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