Claire Denis: Todo o Corpo
Ana David
10 de Dezembro de 2022

O sublime no cinema de Claire Denis tem uma só origem: os instantes da vida quotidiana que, ainda que carregados de significado, passam sem atenção dos que os testemunharam. Essa dimensão de uma vida interior não-verbalizada é, nas palavras da realizadora, tão forte como o destino. A experiência da sua acumulação define- nos, como indivíduos com um portfolio de emoções e sensibilidades infinitamente específico. A sua força poética, única a cada pessoa, confere combustível à vivência humana. É na tradução para a linguagem do cinema deste universo pessoal inominável, imaginado e criado por Denis para as suas personagens, que a sua mestria se explica. Ou antes, se manifesta — num corpo de cinema tão pouco dado a explicações quanto as suas narrativas.

As personagens de Claire Denis, obstinadas por sentimentos de desejo, medo ou rejeição, esperam algo da vida sem saber se o alcançarão. De Protée, em Chocolat, a Camille em J'ai pas sommeil, e Maria Vial em White Material, há uma evidência comum a retirar: o histórico e o social permeiam as suas vidas, as normas sociais ditam o que de si é esperado, e é a sua idade, status social, etnia, nacionalidade, ou sexualidade que ditam a sua posição de outsiders, de estrangeiros. Definido regularmente como um cinema focado nas margens, essa inquietação é não raras vezes simultaneamente física, mental, geográfica e existencial. Seja nos subúrbios de Paris (S'en fout la mort), no Golfo de Djibouti (Beau travail), numa nave espacial (High Life), ou no calor da Nicarágua (Stars at Noon), assistimos a histórias que transportam em si um sentimento de apartamento e exílio. Raramente encontrando uma fonte de conforto nos lugares que habitam, as personagens seguem os seus percursos movidas pelas suas emoções, pela sua identidade e pela sua própria verdade. Estamos perante um cinema crente. Denis, perante personagens que constantemente transgridem as normas, escolhe ser solidária com estas, atribuir-lhes um olhar, acreditar que têm uma oportunidade de conquistar aquilo que perseguem ou de encontrarem redenção do que de mais sombrio as habita. Focada que está no essencial — na força catalisadora das emoções — em detrimento de arcos narrativos lineares, é dos corpos dos actores com quem fielmente trabalha que a realizadora retira alimento para veicular a sua visão profundamente sensorial e poética do mundo. Este trabalho de proximidade indispensável para a criação, requer não menos do que um entendimento mútuo, e uma sedução intelectual correspondida entre as partes.

É à volta destes corpos, emocionais, que tece a sua mise-en- scéne. Jim Jarmusch, de quem Denis foi assistente de realização, descreve os seus filmes como tendo em si “uma espécie de sobriedade que é apelativa, uma forma de evitar drama cliché, e, no entanto, há algo de muito sensual e quase táctil". O aprimoramento da expressão do não- dito pelo corpo dos actores assume em Beau travail um momento pináculo, onde, através da dança, constrói uma coreografia colectiva profundamente visual e física, feita de corpos militares, capaz de veicular uma tensão e transcendência tão únicas ao filme. Filme esse, o sexto da sua filmografia, que lhe trouxe a consagração aos 53 anos. Tinha 42 quando apresentou Chocolat em Cannes em 1988, a sua longe de estreia. É na ligação com outras artes que se encontram pontos de referência e criação essenciais. Por vezes comparado ao free jazz pela sua capacidade de digressão e variação narrativa, o seu cinema é profundamente apaixonado por música, dando palco a múltiplos géneros ao longo da sua filmografia, e de forma quase literal no documentário Man no Run, sobre a banda camaronesa Les Têtes Brulées. As onze bandas sonoras criadas pela banda britânica Tindersticks desde Nénette et Boni são disso prova, constituindo-se como elementos essenciais da atmosfera de cada história. Em Beau travail trabalhou com o coreógrafo Bernardo Montet, e em Vers Mathilde observa e documenta o processo de criação da coreógrafa Mathilde Monnier. À literatura vai buscar não só histórias que adapta — em Beau travail, Vendredi soir, L'intrus, Un beau soleil intérieur, Avec amour et acharnement e Stars at Noon — como também colaboradores de escrita, de que é exemplo a escritora Christine Angot. Os seus filmes, autênticas explorações de um cinema dos sentidos, nunca oferecem fechos narrativos de fácil e total saciação, capazes de ser lidos como desenlaces e respostas sobre o futuro das suas personagens. Antes, tal como os sentidos, oferecem ligações e pontos de fuga, cabendo a cada espectador retirar e interpretar o que sentiu em cada filme. Denis diz que “fazer filmes é uma actividade física”. Não admira, pois, que uma das consequências de visionamento do seu cinema seja querermo-nos fundir com ele e habitar tanto os seus interstícios de sentido como o seu apetite de liberdade.

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