I
As palavras inglesas tourist/tourism (turista/turismo) derivam da palavra tour (volta, viagem), que vem do inglês arcaico turian, do francês arcaico torner, do latim tornare – “girar num torno”, que por sua vez vem do grego antigo tornos (τόρνος) – “torno”.
“Um torno é uma ferramenta mecânica que faz girar uma peça sobre um eixo de rotação para realizar diferentes operações como cortar, lixar, serrilhar, perfurar, deformação, revestir e tornear, com ferramentas que são aplicadas à peça para criar um objeto com simetria sobre esse eixo.” [1]
II
Imaginem areia a verter numa ampulheta, mas inclinem o seu eixo – para a aresta de um triângulo. Dentro da ampulheta uma boca esfomeada liga, lenta e gradualmente, duas barrigas. Ao constituir o lado da forma maior, abre a boca que forma a sua fome a partir de um ponto em que todo o poder e significado irão convergir.
Há membros compridos que escavam a terra para extrair aquilo que foi fornecido: subir e regressar. A brisa torra ao sol, concretizando outra oferta; as lajes de outro convite a reunir.
Primeiro: o ritmo é constante. Membro a membro – alguns têm de parar, para que outros possam escavar mais fundo, para que menos possam acumular mais, para que este menos/mais possa passar para a frente e para trás, para a frente e para trás.
A recapitulação é importante: é a ilusão do cerco da qual todos dependemos. É o feitiço da volta. Neste ensaio da reciprocidade salta-se um batimento e cai a máscara: revela-se que aquilo que foi dado (tirado) nunca pode ser restaurado.
III
Agora a ampulheta encontra-se num eixo vertical. Imaginem-na a reter o tempo e os seus ritmos, não entre duas barrigas, mas através de dois olhos.
Aqui outro cerco, desta vez uma manifestação: um forte e uma cercadura. [2]
Aqui mover-nos-emos com aqueles reunidos pelo tambor. Aqueles que esfregam a noite por todo o corpo e ocupam as ruas. Aqui, vamos senti-lo; batida e ritmo.
Esta cortina de tinta vai desestabilizar o quadro.
Os olhos fecham-se para limpar o brilho negro nas pálpebras, é apenas através deste capuz que tudo pode ser visto. No ritmo que o corpo recorda, passado presente e futuro tremem numa trança; três fios a ondular ainda que distintos. Cada um incompleto por si só, cada um emaranhado na conclusão do outro.
A ampulheta inclina-se e a trança desembaraça-se.
IV
A tinta brilhante da memória não é para todos.
No horizonte, chega um navio. Aqui vem o panóptico esfomeado por quem a areia tem estado a verter. O leviatã que tem esferas únicas bordadas no flanco. Das suas entranhas vazam centenas de gafanhotos, à espera de reunir as migalhas do encontro – as que podem ser isoladas, ampliadas, viradas uma e outra vez. [3]
Vejam como os olhos se arregalam para destrançar a trança. Vejam como seguram com firmeza a secção do presente (como crianças a quem se mostram os segredos de um truque de magia [4]). Que magia torna o presente uma dádiva, não uma História de roubo sangrento?
(Procurem por estes encantamentos; Jugaad na Índia, zizhu chuangxin na China, gambiarra no Brasil – sintam como tornam pequenos os lugares, para tornar outros grandes.) [5]
Vejam agora como as crianças desejam o passar do passado. Escutem o som de (in)liberdades passadas - reparem como fica na superfície da parte superior do corpo. Olhos nos olhos, cabeças em frente. ajudas a cantar [6]
Escutem/observem outro movimento. Aquele que balança para incluir o que está escondido nas margens do palco. Observem a forma como a música é cantada aqui, quando a margem é centro. Observem como viaja da ligação ao chão, pelas partes inferiores, até ao chakra da garganta.
Vejam como os olhos se encontram bem fechados. A mão no coração.
Escutem ali, num outro quadro estável, a forma como as cordas da kora são dedilhadas – deslumbrantes, fluídas, cristalinas. Kora significa viagem, mas não a garantia da chegada. Um reentraçamento vibratório – precipitado, claro, brilhante, move o quadro para uma fluidez espinal. Uma ondulação que nos faz regressar à água profunda. (Porque nenhum deles consegue parar o tempo) [7]
Observem/escutem como este som cai em cascata através do olhar. Observem como outra pintura de memória se encontra misturada com o mar, aplicada na brisa que torrou ao sol. Tudo isto é feito através do olhar. [8]
[1] em Capítulo 7 de US Army Training Circulation publicado em 1996 (Chemical Engineering Department, Carnegie Mellon University website)
[2] Moten, Fred, e Stefano Harney. 2013. The Undercommons: Fugitive Planning & Black Study.
[3] Kincaid, Jamaica. 2018. A Small Place
[4] Kincaid, Jamaica. 2018. A Small Place
[5] Kincaid, Jamaica. 2018. A Small Place
[6] Bob Marley - Redemption Song, cantado aos 105 minutos
[7] Bob Marley - Redemption Song, cantado aos 105 minutos
[8] Dito aos 127 minutos
Jemma Desai
Doutoranda na Central School of Speech and Drama (Londres), presentemente a pensar através de ideias de liberdade em imagens em movimento e performance, Jemma Desai relaciona-se com programação de cinema através da pesquisa, da escrita, da performance e da pedagogia. Trabalhou por toda a indústria cinematográfica, em lugares como Berwick Film & Media Arts Festival, Blackstar Film Festival, BFI e British Council, e baseia a sua investigação nestas experiências, encontrando formas de refletir sobre como o imperialismo se replica através de processos de trabalho institucionalizados, afetando as várias maneiras como nos relacionamos através da arte.
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