Chocolat, Claire Denis
Karina Griffith
10 de Dezembro de 2022

Être Chocolat


No dia do casamento de Meghan Markle com o Príncipe Harry em 2018, a empresa de chocolates alemã Super Dickmann lançou um anúncio na sua página de Facebook com a personificação em desenho animado do seu famoso doce de chocolate e marshmallow. A sobremesa, conhecida como um Schokokuss (beijo de chocolate), tinha um vestido branco, usava uma coroa e segurava um ramo de flores com a legenda: “Para onde estão a olhar? Também não quereriam ser a Meghan hoje?”

Os Schokokuss eram conhecidos coloquialmente como N****rKuss, desde a época em que foram introduzidos no mercado alemão no final do século XIX até aos anos 70, quando protestos pressionaram por uma mudança de nome. Cabeças decapitadas e mãos desmembradas são representações estranhas para sobremesas doces. Conhecendo a história do chocolate e do colonialismo, doces como os beijos de chocolate, as “mãos de chocolate” belgas e os “Conguitos” espanhóis tornaram-se lembranças inquietantes da brutalidade que era parte integrante da margem de lucro deste alimento colonial.

Se o espectadorismo é consumo e o consumo é trabalho, qual é o trabalho envolvido no consumo de um filme chamado Chocolat (1988)? Um filme que faz duas menções ao alimento escuro, rico e estimulante, ao mesmo tempo que tem lugar num país em que as matérias-primas para a sua produção têm implicações coloniais? Um filme cujo principal protagonista, Protée, é o criado negro de uma família francesa abastada colocada nos Camarões pré-independência, no início dos anos 50? Um filme cujo principal protagonista tem uma pele castanha escura e profunda; uma pele que é uniformemente tonificada e texturizada? Uma pele que é descrita como — e para alguns é sinónimo de — do produto cuja produção explorava as pessoas que se pareciam com ele?

A mercantilização de todas as culturas alimentares é política. No seu livro Cocoa & Chocolate 1765–1914, W. G. Clarence- Smith explica que as plantações alemãs criadas pela empresa de transportes marítimos Jantzen & Thormählen e Woermann, de Hamburgo, estabeleceram plantações de cacau nos Camarões para produzir chocolate para a Europa [1]. Realça que o povo Bakweri, local, também cultivava cacau em pequenas parcelas de terra comunitária na altura, mas foi mais tarde forçado a trabalhar nas propriedades alemãs de cacau; camaroneses mal-tratados foram caçados e forçados a trabalhar 18 horas por dia nos campos, para produzir colheitas de bananas, café, óleo de palma, borracha e cacau. Os rebeldes e os que faltavam ao pagamento dos impostos aos colonizadores eram forçados a trabalhar sem salário nas plantações. As empresas como a Lehman, sediada em Dresden, e a Stollwerck em Colónia, também produziam a maquinaria de ponta para o fabrico de chocolate nos finais do século XIX e inícios do século XX. A França tornou-se o maior distribuidor de chocolate (consumido sobretudo na forma de bebida) no final do século XIX. O chocolate era um dos principais produtos do comércio colonial europeu, que dependia da exploração da terra, da agricultura e de pessoas para a obtenção de lucros.

Numa entrevista, Denis revelou que o título do seu filme se refere ao velho ditado francês être chocolat (ser chocolate) que significa ser ludibriado ou enganado [2]. O termo encontra-se personificado no duo de palhaços franceses dos finais do século XIX “Foottit et Chocolat”, o último dos quais interpretado por um homem negro [3]. No filme de Denis, Protée é chocolat, mas tal como o palhaço negro gozado pelas piadas do seu patrão Foottit, encerra em si o potencial de inverter os papéis e conseguir uma pequena vitória no final. Chocolat está repleto de gordurosas panorâmicas a 180 graus e tensas cenas climáticas em plano geral. É temperado por salgadas sequências de exteriores de fins de tarde que brilham e definem a pele escura como mais do que um contraste com a cor branca. Isto não é um feito pequeno, quando se considera que a película não foi feita para representar peles negras. Quando a Kodak começou a produzir película para venda ao público, estabeleceu o padrão com os cartões Shirley, apresentando uma modelo cuja pele branca era percebida como a norma para o sujeito da câmara. Isto fez com que fosse difícil colocar uma pessoa de pele escura ao lado de uma pessoa com a pele branca em frente a uma câmara, uma vez que a emulsão do filme favoreceria tudo o que fosse claro e deixaria as partes mais escuras em duas dimensões, sem profundidade. Como apontou Lorna Roth, “a emulsão de filme poderia ter sido concebida inicialmente com mais sensibilidade ao continuum de tons de pele amarelo, castanho e avermelhado, mas o processo de desenvolvimento teria de ser motivado por um reconhecimento da necessidade de uma gama dinâmica ampliada” [4]. De acordo com a sua pesquisa, foram os produtores de mobiliário de madeira e, sim, de chocolate para venda ao público, que exigiram que a Kodak apresentasse outras opções para fotografarem com exatidão os seus produtos para publicidade — não foram os clientes negros a queixarem-se sobre a qualidade das suas fotos de família. A Kodak retrabalhou a película para que o chocolate parecesse desejável e delicioso nas fotografias.

Lembro-me de estudar os créditos de Moonlight (2016) e contar mais de dezasseis maquinistas (a equipa responsável pela montagem de câmeras e luzes), que interpretei como uma pista sobre como Barry Jenkins e a sua equipa criaram representações tão luminosas de corpos negros no ecrã. Jenkins dá crédito às metáforas visuais delicadas de Denis e em particular ao seu filme Beau Travail (1999) por inspirar o ritmo e a montagem de Moonlight [5]. Vejo Chocolat em Moonlight. Partilham um compromisso de representar a pele negra com a mesma luminosidade na escuridão como no sol brilhante, com projeções azuis cintilantes.

Como digerimos Chocolat? Temos de suportar os tons amargos da violência colonial, supremacia branca e patriarcado, misturados no aparato do cinema e no enquadramento desta história complexa de forma a saborear a forma paciente e honesta como Denis consegue fazer com que um criado negro pareça realeza.


[1] W.G. Clarence-Smith, Cocoa and Chocolate, 1765-1914, 86.

[2] Judy Stone, CHOCOLAT - Bittersweet Memoir Of Colonial Africa.

[3] Matthew McMahan, Projections of Race at the Nouveau Cirque: The Clown Acts of Foottit

and Chocolat.

[4] Lorna Roth, Looking at Shirley, the Ultimate Norm, 118.

[5] Alice Gregory, The Fearless Cinema of Claire Denis.


Karina Griffith


Artista e investigadora, Karina Griffith usa a imagem em movimento, a performance e instalações para questionar arquivos e condições de espectatorialidade. Os seus filmes e instalações já foram exibidos em galerias e festivais internacionais, e fez curadoria de cinema e de programas interdisciplinares para o Goethe Institute, o Berlinale Forum, o Oberhausen, entre outros, tendo-se juntado à equipa curatorial do Berlinale Forum Expanded em 2021. Leciona na Berlin University of the Arts e é doutoranda no Cinema Studies Institute da Universidade de Toronto, onde a sua pesquisa sobre autoria negra no cinema alemão interage com teorias do afeto e interseccionalidade.

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