Canoas + Que Horas Ela Volta
Djaimilia Pereira de Almeida
10 de Novembro de 2024

A água não mente

É à volta da piscina que Canoas, de Tamar Guimarães, se diverte. A piscina muda, consoante a hora do dia. Vemos a piscina diurna, onde a patroa se banha, esquecida das horas, enquanto os empregados, fardados a preto e branco, se afadigam em tarefas. A patroa está perdida em pensamentos, olha de frente o Sol, não dá por eles e eles não dão por ela.

Entediada, levanta-se. Muda de posição, lembra-se de alguma coisa, vai para dentro, chama alguém. É invisível aos empregados, que se referem a ela, entredentes, enquanto vão limpando a casa. E eles são invisíveis para ela, que se passeia por ali sem ser vista, quase como num encontro entre cegos.

É dessa dupla invisibilidade que é feito Canoas, mesmo quando o dia dá lugar à noite, e a festa preparada durante a tarde pelos empregados se inicia. À patroa apenas coube porventura lavar-se, vestir-se, maquilhar-se e preparar o espírito para receber.

Se a patroa conhece apenas o ócio, os empregados desconhecem-no. A piscina, que ocupa a tela, tem como moldura os passos destes e os passos dela, quando se levanta para entrar para o interior da casa, languidamente movida pelo tédio.

Mas nenhuma das partes vê a outra, é uma dança entre contrários. Uns aparecem para ela desaparecer, contrários também à superfície das águas, que, em vez de os espelharem, reflectem apenas a cegueira de parte a parte.

Eles andam por ali, como fadas, num bailado em que acompanham os passos dos convivas, apanhando os copos que deixam espalhados, adivinhando-lhes os desejos, limpando o seu rasto.

Os convivas conversam sobre arte e sobre a eterna crise brasileira, sobre artistas e o estado do mundo. O seu tom é teatral e alheado. Dir-se-ia que o seu mundo espelha as suas angústias para com a classe social a que pertencem os mesmos que lhes recolhem os copos e distribuem os canapés. Dá-se uma oposição entre a fala e o gesto, ou entre fala e prática. O que dizem não se espelha no modo como agem. Alheios  aos outros, os convidados da festa são profissionais do outro, bailam e bebem, cegos e surdos aos empregados, a quem cabe apagar-se e cumprir o trabalho.

Se a moldura da festa se desenha nas margens da piscina, tal indica também que a desigualdade é, em Canoas, um jogo de espelhos. De noite, a piscina está negra, reflecte apenas as luzes e o restolhar dos vestidos. E, no entanto, é exactamente como diante de um espelho a negro que se conversa na festa em Canoas, onde alguns se drogam e bebem cocktails como se estivessem no interior de uma não duração, fora do tempo, e outros se cansam, lembrados das horas que os fustigam, enquanto trabalham.

O cansaço, enquanto efeito do esforço e do trabalho, é uma projecção da desigualdade. O dia dos empregados iniciou de manhã cedo e terminará apenas na manhã seguinte. O dia dos senhores, fora do trabalho, está além do cansaço: quando enfim se cansam é porque se divertiram.

A parte menos fecunda de Canoas talvez sejam as conversas tidas pelos convidados na festa, que de tanto procurarem revelar a maneira como o mundo dos empregados é, para os convivas, apenas faits divers e transacção, acabam por dizer mais do que mostram. Se é claro que é conversando que se confirmam as diferenças, talvez vejamos melhor o que Tamar Guimarães pretende revelar-nos se nos concentrarmos na dança, no silêncio do claro-escuro, no cenário madeira do interior das salas, no brilho dos vestidos em contraste com o silêncio dos gestos e das caras dos trabalhadores.

A piscina é, ao mesmo tempo, testemunha muda e caixa de ressonância, porque a água não fala, mas também não mente. Lavam-se os ricos. Os pobres lavam o lixo dos ricos — sem que uns e outros cheguem alguma vez a comunicar ou a ver-se.

Amanhece, os empregados regressam a casa, despem a farda. Os patrões dormem. Cada qual se ausenta, pareceria que se despedem no fim de um encontro, que afinal nunca aconteceu, porque não se conhecem, nunca se viram, nunca deram uns pelos outros, apesar de serem motivo de conversa recíproca, como os espaços em branco numa página preenchida de texto.

A estranha governanta

Val (Regina Casé), mulher no centro de Que Horas Ela Volta? tem família longe e família perto. Passa o dia na casa dos patrões, onde é a mãe da casa. É ela que ensina a nadar o mais novo e dá conselhos aos mais velhos sobre namoros. É ela quem escuta os segredos, faz cafuné, consola e os serve a todos abnegadamente. Dir-se-ia que gosta do que faz, ou aparenta, pelo menos, um grande carinho pelos seus filhos postiços. O mais novo pergunta à sua mãe de faz-de-conta, referindo-se à sua mãe, “Que horas ela volta?”, e a mãe da casa responde, abraçando o menino, que não sabe.

É um lugar reconhecível na ficção por ser reconhecível na vida de muitas cidades desiguais. Mulheres que acordam cedo (quando não dormem em casa dos patrões) e deixam os filhos em casa, partindo para as casas onde trabalham, onde são todo o dia mães dos filhos de outras mulheres, de quem recebem ordens. O dia da mãe imaginada por Anna Muylaert admite momentos redentores, como quando experimenta os cremes da patroa, ou apanha sol numa pausa, até mesmo quando nina com amor os seus meninos adoptivos. Mas é mãe ao longe dos seus, a quem vai telefonando e dizendo que ama muito.

Interessa entender de que serão feitas mulheres assim e de que serão feitos os filhos destas mulheres, que crescem emprestando a sua mãe a meninos ricos, enquanto porventura se desembaraçam sozinhos em casa até a mãe chegar, ao cair da noite: ou que nem sequer chegam a vê-la, porque a sua mãe dorme na casa onde trabalha. São mães comuns, mulheres como tantas, e, no entanto, a maternidade e o amor são aqui uma função do valor do trabalho e da geometria do capitalismo, que as põe na posição de venderem o seu tempo em troca da perda da infância dos seus filhos — tempo perdido e irrecuperável, que elas e eles poderão lamentar para sempre.

Que dizer, por outro lado, da mãe ausente, a que não tem horas para voltar, a patroa pela qual o filho vai perguntando? Não é apenas um duelo entre invisíveis, porque a mãe da casa está à vista e a patroa também, nas ordens que se vão cumprindo ao longo do dia.

A chegada da filha de Val a casa dos patrões, por razões escolares, ocasiona um reequilíbrio redentor de posições e põe a nu a condição da mãe, que até então emprestara aos filhos dos patrões. Talvez os sucessos de Jéssica (Camila Márdila) importem na medida em que representam um ajuste de contas. Mas por venturosos que sejam não chegam a compensar por completo a situação poética de ambas: o modo como a filha estranha a vida da mãe e como, no fundo, ambas são afinal estranhas admitidas num arranjo que as silencia. O que será que nos diz Que Horas Ela Volta? não só sobre Val, mas sobre as mulheres como Val, a não ser que a negociação dos seus afectos é feita à custa de nunca realmente pertencerem, de serem, ao mesmo tempo, governantas e estranhas, hóspedes e entidade hostilizada, nas casas onde dormem? É difícil situar o lugar onde fica a casa das mulheres como Val, se já não pertencem aos seus lares, de que se apartaram, em virtude do trabalho, e não pertencem também ao lar onde trabalham.

São mães sem casa, consolação de empréstimo, figurações da saudade, pessoas sem lugar, encarregues do governo dos espaços que nunca serão seus, tratando como suas as crianças doutros, no limite indiferentes ao amor que por elas mulheres como Val vão desenvolvendo. E enfim sós na sua condição, porque nem os filhos próprios as conhecem nem elas são já mães de alguém.

Então aqueles lapsos de tempo de Val, ao sol, num intervalo entre tarefas, adquirem a importância que têm, porque nesses intervalos Val é apenas ela mesma, independentemente do seu papel de mãe duns e doutros. Poderia este filme existir se Val fosse uma mulher sem filhos? A dinâmica de Que Horas Ela Volta? depende do pêndulo entre pertenças e da distribuição de sentimentos pendulares. De quem é Val? Quem são os seus donos: Jéssica, os patrões e seus filhos — quem se acusa? Talvez uma pessoa pertença, antes de mais, a si mesma, e apenas o valor dessa proposição seja inegociável, lembra Anna Muylaert, com graciosidade e agudeza.

Djaimilia Pereira de Almeida
Djaimilia Pereira de Almeida é uma artista portuguesa. É autora de 14 livros, entre os quais os romances Esse Cabelo (2015), Luanda, Lisboa, Paraíso (2018), As Telefones (2020), Três Histórias de Esquecimento (2021) e Ferry (2022). Os seus livros e ensaios receberam o Prémio Oceanos, o Prémio de Ensaísmo Serrote e o Prémio Literário Fundação Inês de Castro, entre outros. Ensinou literatura e filosofia na New York University (NYU). É consultora da Casa Civil do Presidente da República para os Direitos Humanos, Igualdade de Oportunidades e Não-Discriminação. A sua obra, traduzida em dez línguas, foi publicada na serrote, Granta, Folha de S. Paulo, ZUM e la Repubblica.

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