Buck and the Preacher
Ana Naomi de Sousa
19 de Julho de 2024

“Pela forma como está montada, a indústria [do cinema] é compelida a apresentar ao povo americano uma fantasia sobre a vida americana que se autoperpetua... e o rosto negro, verdadeiramente refletido, não só não faz parte deste sonho como lhe é antítese. Isto coloca o intérprete negro perante um duro constrangimento. Por outro lado, este não tem realmente o direito de não aparecer [...] por todas as pessoas que precisam de o ver.”


Em 1968, James Baldwin escreveu um texto para a Look, sobre Hollywood e o seu amigo Sidney Poitier, o ator baamiano e americano, que se tornara o primeiro intérprete negro a ganhar o Óscar de Melhor Ator alguns anos antes (1964). Na parte final do texto, que trata apaixonada e generosamente o pesado fardo da representação de Poitier, Baldwin lembra ao leitor que “Sidney, como todos nós, foi apanhado pela tempestade”. Essa tempestade era a América dos anos 60, a braços com uma luta amarga pela igualdade racial, e Baldwin escrevia sobre a perceção que Sidney estaria mais complacente, que se havia vendido, e que, ao fazê-lo, se tornara numa espécie de cúmplice da violência dirigida diariamente aos afro-americanos, mais de um século após a proibição constitucional da escravatura. Como dizia Baldwin, sem retirar a Poitier o seu talento ou graça, ou até a sua inegável força no ecrã, “... toda a celebridade negra é vista com alguma desconfiança pelas pessoas negras, que têm todas as razões do mundo para se sentirem, elas próprias, abandonadas... Roubaram tudo às pessoas negras deste país, e elas não querem que lhes roubem os seus artistas... sentiram que Sidney estava, efetivamente, a ser usado contra elas”.


Sidney, entretanto, guardara para si próprio quase todas as suas lutas internas — mas era certo que as tinha. Numa entrevista à Newsweek, em 1961, mencionou o conflito com que lidava: “Não gosto de mim enquanto ator... de me ver no ecrã [...] deixa-me desconfortável, envergonhado. A imagem que ali vejo está em conflito com aquela que tenho de mim mesmo”3. Queria realizar, dizia, mas passou mais de uma década até conseguir fazer o seu primeiro filme. Entretanto, lidou à sua maneira com os desafios políticos do seu tempo, participando na marcha de Martin Luther King sobre Washington, falando publicamente sobre direitos civis, e viajando para o Quénia para participar nas celebrações da independência da nação. Depois, vieram talvez os seus papéis mais famosos — In the Heat of the Night, Guess Who’s Coming to Dinner, To Sir, with Love.


Em 1972, Sidney Poitier estreia-se finalmente como realizador com Buck and the Preacher, regressando ao género do western (tendo anteriormente interpretado, em Duel at Diablo, de 1966, o parceiro de James Gardner), mas agora com três personagens centrais negras e um pano de fundo histórico, raramente visto, da experiência afro-americana, e uma banda sonora contagiada pelos blues, escrita pelo trompetista e saxofonista de jazz Benny Carter.


O filme passa-se após a emancipação (1863) e o final da guerra civil (1865), quando milhares dos chamados “Exodusters” deixaram os estados ao longo do rio Mississipi (Louisiana, Mississippi e Tennessee) em direção ao Kansas. Deixando para trás, a sul, dolorosas memórias da escravatura, onde foram proibidas de possuir terras, essas comunidades migrantes procuravam uma vida melhor mais a norte — o que raramente era uma viagem linear em direção à liberdade.


Filmado no México e no Quénia, com os seus velhos amigos Harry Belafonte (também produtor) como Preacher, o seu parceiro tão cómico como imprevisível, e Ruby Dee como a sua mulher, Ruth (os três conheceram-se no American Negro Theatre, no Harlem, durante os anos 40, onde todos começaram as suas carreiras). Poitier interpreta Buck, o herói do filme, responsável pelas carroças, dedicado a assegurar que as famílias que escapavam do sul conseguiam atravessar “o oeste” em direção às Grandes Planícies, apesar da ameaça sempre presente de caçadores de prémios brancos e racistas. O filme também retrata uma série de encontros e negociações com os povos indígenas, cujas terras são atravessadas pelas caravanas, nas quais fica claro quem é o inimigo comum. Ainda assim, acima de tudo, Buck and the Preacher é uma história comovente sobre o encontro cómico entre Buck, íntegro e sincero, e Preacher, imprevisível e engraçado, e a amizade improvável que forjam ao longo do caminho em direção a um futuro incerto.


Menos duro e mais propício a ser visto em família do que os seus primos Blaxploitation da mesma época, Buck and the Preacher é, como eles, um filme de entretenimento dirigido em primeiro lugar a um público negro, como pretendiam Poitier e Belafonte. Como escreve Aisha Harris, crítica cultural: “diz ‘Sou negro e tenho orgulho disso’ à sua maneira”.


Em última análise, Sidney Poitier é reverenciado acima de tudo pela sua luminosidade e elegância enquanto ator, pelo significado do seu lugar único no cinema americano num momento tão crucial na história. Buck and the Preacher pode não ser um filme pelo qual seja frequentemente recordado, mas ocupa o seu próprio espaço na jornada do cinema norte-americano, e é um lembrete compassivo das lutas históricas e atuais de americanos negros, tanto dentro como fora do ecrã.

Ana Naomi de Sousa

Ana Naomi de Sousa é realizadora e jornalista. Realizou os documentários The Architecture of Violence, Angola – Birth of a Movement, Guerrilla Architect e Hacking Madrid — todos eles exibidos na Al Jazeera English.Colaborou com a agência Forensic Architecture, em Saydnaya, e num documentário interativo sobre uma prisão militar síria para Amnistia Internacional. Colaborou com Decolonizing Architecture em vários filmes e instalações. Escreve sobre a política pós–colonial, espacial e cultural para diversas plataformas, incluindo The Guardian, Al Jazeera e The Funambulist.

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