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Quinhentos Ratos, ou "Born in Flames"
“Se fossem o exército, a escola, o chefe das instituições de saúde, ou o líder do governo, e todos vocês tivessem armas, quem preferiam ver a entrar porta adentro: um único leão, ou quinhentos ratos?” Este exercício intelectual é proposto por Zella Wylie, uma consultora jurídica do Women’s Army (interpretado por Florynce Kennedy, advogada e ativista na vida real), pouco mais de meia hora após o início de Born in Flames (1983). A segunda longa-metragem de Lizzie Borden é punk e presciente. Impulsionada por uma banda sonora sedutora, retrata um mundo que é muito semelhante ao nosso — ou talvez um que seja um pouco melhor, visto que decorre dez anos após uma Guerra da Libertação social-democrata. Apesar do sucesso desta revolução pacífica, nem tudo vai bem. O governo congratula-se alegremente pelo seu progressismo, mas a promessa de emancipação tem sido mantida de forma desequilibrada, se é que foi mantida. A agitação entre mulheres, e sobretudo entre mulheres queer negras, está a intensificar-se. Adotando uma política feminista intersecional, o Women’s Army começa a explorar a possibilidade de levar a cabo ações diretas contra o estado, fazendo pressão sobre exigências que não perderam a sua urgência cerca de quarenta anos após o lançamento do filme: direitos laborais, habitação acessível, justiça reprodutiva, e um fim ao racismo, homofobia, e violência de género.
Irão agir como o leão ou como os quinhentos ratos? O comentário de Zella surge como resposta a Honey, uma DJ de rádio que regressou de uma marcha de protesto, desapontada com a separação que testemunhou entre as três mil mulheres que participaram. Como irão efetuar mudanças se são incapazes de se reunir em torno de uma causa comum, ou decidir-se por uma estratégia partilhada? Zella vê as coisas de forma diferente: “Quinhentos ratos”, diz ela, “podem causar imensos danos e perturbações”. Um corpo único e heroico possui uma força formidável, mas quando comparado com o enxame desordeiro, é mais fácil de identificar, bloquear, abater. Mais ainda, a criação de unidade pode ser coerciva e opressiva, negando a diferença e o antagonismo que são necessariamente inerentes à formação de qualquer grupo. Honey é certamente a personagem mais central em Born in Flames, mas a posição adotada por Borden é mais próxima da de Zella. O filme não possui nenhuma da univocidade muitas vezes encontrada em obras de cinema militante. À semelhança da primeira longa-metragem de Borden, Regrouping (1976), um documentário experimental que explora as vicissitudes da pertença dentro de um um grupo feminino de consciencialização, Born in Flames presta atenção às fissuras que existem dentro dos movimentos feministas, dispensando totalmente noções românticas de irmandade acolhedora, ao mesmo tempo nunca desistindo da possibilidade da ação coletiva. Borden sabe que o campo da luta é consideravelmente mais complicado do que um simples “nós contra eles”. Com humor e nuance, traz para primeiro plano as divergências que existem entre fações que estão ostensivamente do mesmo lado, e enfatiza como os compromissos feministas são influenciados pela raça, sexualidade e classe. Regrouping encena um interesse no conflito e na contradição não apenas ao nível do conteúdo, mas também ao nível da forma, adotando uma montagem disjuntiva e bandas sonoras múltiplas, muitas vezes sobrepostas, que passam sobre a imagem, sem consideração pela sincronização. Apesar de menos abertamente vanguardista nas suas estratégias audiovisuais, Born in Flames está igualmente interessado em virar as costas ao leão da unidade estética. Borden diverte-se com a fragmentação e justaposição, reunindo cenas de rua que transbordam com a vitalidade de um documentário, com sequências manifestamente escritas. Tece uma tapeçaria de diferentes texturas imagéticas, da película de 16mm às transmissões televisivas, imagens de vigilância, e apresentações de slides. (Um dos grandes temas do filme é o papel dos meios de comunicação na insurreição e na contrainsurreição). Como a coligação que finalmente forma para orquestrar o espetacular ato de violência na sua conclusão, Born in Flames é composto por partes recortadas que se mantêm unidas no interesse de um objetivo comum, sem qualquer pretensão de suavizar as semelhanças.
Na sua crítica ao filme, publicada na New York Times à data do seu lançamento, Janet Maslin escreve que Borden “apresenta uma variedade de ideias feministas radicais, sem muita atenção à narrativa que as contém” e dá pouco tempo à “explanação convencional”. Para Maslin, esta qualidade — que, de fato, carateriza o filme — é presumivelmente uma falha. Contudo, só pode ser visto assim se Born in Flames for julgado considerando o tipo de narrativas leoninas que Hollywood privilegia, o que nunca foi o objetivo de Borden. O choque de perspetivas e estilos que o filme coreografa, bem como a sua relativa falta de interesse numa construção standard de narrativa, fazem parte do seu compromisso entusiasmante com uma política murina. Deixem os quinhentos ratos correrem livremente em todas as direções, avançando em passos largos ainda que alguns caiam, escapando às armadilhas que lhes foram colocadas, invadindo as portas do status quo.
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