1. abro com uma citação de schopenhauer: a história de uma vida é sempre a história de um sofrimento.
2. não é de admirar que carlos reygadas tenha dito que este filme era o seu “filho problemático”, uma vez que esse é, normalmente, o que põe em causa os valores instituídos, o que faz (ou quer fazer) o oposto do que é esperado. rebela-se, revolta-se — sem subtileza.
3. a luta contra o cliché é o que há de mais evidente neste filme. rejeita, desde o primeiro momento, fazer parte do negócio de entretenimento. rejeita a estrutura, os mecanismos, a fórmula bem-sucedida dos filmes de hollywood — mesmo os de baixo orçamento. oferece-nos outra noção de ritmo (o tédio dá-nos a noção do tempo, a distracção tira-a — schopenhauer, novamente), de gosto, e de beleza.
4. mostra-nos corpos que fogem aos padrões que dominam o cinema institucional. reygadas afirma que esta abordagem não é uma provocação, que apenas quer mostrar a beleza na sua multiplicidade. mas mostrar corpos que não correspondem aos discursos predominantes e que, por isso mesmo, estão ausentes das suas narrativas é uma provocação. e uma dupla reivindicação: por incluir no filme corpos que normalmente não são representados, e por celebrar corpos que reflectem, de forma mais fiel, a diversidade da população mexicana.
5. o espectador quer ver-se representado — no cinema e noutras formas de arte. no entanto, a representação que encontra, em grande parte, é uma mentira. quer ver-se retratado fielmente ou da melhor forma possível? porque a melhor forma possível é um padrão que lhe foi impingido — irreal, idealizado. quando se vê confrontado com o que são, supostamente, os seus defeitos, não acaba por rejeitar o seu retrato, uma vez que essa imagem não corresponde ao corpo que aprendeu a valorizar?
6. há pessoas que, quando bebem, ficam frustradas se não bebemos com elas, porque não vamos espelhar o seu estado. na política, acontece algo semelhante: a presença constante, no mundo, do totalitário reflecte o desejo de ver no poder alguém que espelhe as suas ideias, que legitime o seu idealismo. o totalitário quer forçar os outros a serem como ele é, a (não) sentir como ele (não) sente, para não se sentir sozinho. procura conforto, estabilidade — uma falácia, coisa inexistente. recusar a mudança é subordinar-se ao medo, escolher uma miséria mais ou menos suportável. e, na impossibilidade de convertê-los ao seu modo de existir, o totalitário mata — literal e metaforicamente — aqueles que abraçam a impermanência das coisas, a fragilidade, a ambiguidade, o inesperado. mata porque quer ver no outro o medo que (não) sente. ao sentir-se negligenciado, inexistente, impõe ao outro a sua inexistência: mata — literal e metaforicamente. sente-se sozinho, o totalitário. e a solidão é o grande desespero.
7. então, o sadismo tem uma explicação simples: quer-se magoar porque se sente magoado. quantos de nós não vivemos isso diariamente? a violência, a humilhação são de tal forma degradantes que, de facto, não há como não nos sentirmos oprimidos, diminuídos, inexistentes. a opressão nasce do medo do caos — e o caos está sempre presente. sinto-me abusado pela corrupção, pelo poder, e então resisto. e a resistência só cria, no outro, mais vontade de oprimir. não cedo ao que ele sente, ao que ele quer que eu também sinta: medo, solidão, dor, ausência. infelizmente, a empatia falha e não sei de que forma se ensina. e a sociopatia torna-se o último reduto — na realidade e na ficção — para tentar escapar ao ciclo de desespero. daí o encantamento pelo true crime, pela delinquência, pela falta de relação com os sentimentos.
8. uma tentativa de escapar à solidão é a criação de comunidades. mas, numa sociedade doente, convertem-se em superestruturas que sublinham o abismo que as divide: a religião, o futebol, a guerra, o nacionalismo. há sempre outros países, outros deuses, outros clubes e forças armadas. o desespero é de tal ordem que as comunidades se tornam cultos — viram forma sem conteúdo. o abismo só acentua a solidão: estar sozinho no meio da multidão, ser invisível num mundo superpovoado.
9. reygadas pede ao seu país — e aos outros todos — que tenha coragem, que não entre na mentira nem se deixe resignar, que, em vez de se virar contra si próprio, disfarçando-se daquilo que não é, se responsabilize e se apaixone pelas suas supostas deformidades. é uma provocação, uma crítica, e um apelo. mas a realidade é esmagadora, reygadas, e difícil, por isso, de amar.
10. reygadas diz amar os seus actores e personagens. talvez por isso mesmo os tenha filmado de forma a mostrar-nos que, se algum deus existe, não sente amor por nada. não há ninguém que (n)os proteja do mal — muito pelo contrário. descer ao inferno é perceber agudamente a realidade. a batalha no céu deu origem ao inferno — lugar que conhecemos, porque nascemos, vivemos e morremos nele.
11. e, apesar de procurar fazer perguntas, não querendo dar respostas, reygadas faz das primeiras as segundas — e o seu contrário também —, expondo-as, devolvendo-nos a nossa vacuidade.
12. fecho com uma citação de schopenhauer: cada desgraça particular parece, é certo, uma excepção; mas a desgraça geral é a regra.
miguel bonnevillemiguel bonneville introduz-nos a histórias autoficcionais, centradas na desconstrução e reconstrução da identidade, através de obras que cruzam múltiplas áreas artísticas. Realizou filmes como Traça (2016), Um medo com duas grandes faces (2022), e Camera obscura (2023). Publicou os livros Ensaios de santidade (Sr. Teste, 2021), O pessoal é político (Douda Correria, 2021), e ainda as edições de artista Jérôme, Olivier et moi (Homesession, 2008), Notas de um primata suicida (2017), e, através do Teatro do Silêncio, Dissecação de um cisne (2018), Lamento do ciborgue (2021), Recuperar o corpo (2021) e Câmara escura (2022).
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