Premiado com o Urso de Prata no Festival de Berlim em 2022 e dedicado ao cineasta lituano Sharunas Bartas, Avec amour et acharnement é uma adaptação do romance Un tournant de la vie (2018), de Christine Angot, que, tal como em Un beau soleil intérieur (2017), assina o guião com Claire Denis. Retrato do triângulo amoroso entre Sarah (Juliette Binoche), jornalista cultural da Radio France Internationale, Jean (Vincent Lindon), seu companheiro e antigo jogador de rugby, e François (Grégoire Colin), o amante que, de acordo com os diálogos, “traz de volta o passado”, o filme abre-se a leituras adjacentes. A construção narrativa da intriga amorosa torna sensível uma sintomatologia (ou uma hantologia, no sentido derridiano) da sociedade francesa contemporânea, a sua malaise, aqui ligada à questão colonial, que atravessa a obra de Denis desde Chocolat (1988), primeira longa-metragem, à persistência de estruturas coloniais e ao entrelaçamento de divisões sociais e raciais.
Avec amour repensa as relações entre o centro e a periferia. Filmada numa praia corsa, décor que não só remete para o imperialismo francês, mas que também evoca as políticas migratórias europeias e a passagem mediterrânea, a sequência de abertura, dotada de uma grande sensorialidade e de uma importante dimensão háptica, figura o contacto entre os corpos de Sarah e Jean. Porém, a découpage e a montagem dessa cena de tensão fusional, bem como o seu tratamento sonoro (o silêncio e a banda-sonora composta pelos Tindersticks), anunciam já a desintegração por vir e apontam, de maneira incisiva, para uma malaise que é simultaneamente individual, colectiva e histórica. Na sequência seguinte, filmada já em França, Paris aparece não como o reverso, mas como a continuidade ou o prolongamento do espaço-tempo corso, um lugar histórico e político mais do que físico. A representação da capital francesa funda-se num princípio de ex-centração. A câmara de Éric Gautier dá a ver uma porosidade entre o “aqui” e o “ali”, uma deslocação dos parâmetros definidores do centro e os indícios de uma transposição do paradigma colonial para o antigo espaço metropolitano. Avec amour torna sensível os sistemas de dominação e a articulação (dinâmica) entre categorias de classe e raça na sociedade francesa contemporânea — em particular, ao nível da divisão técnica do trabalho. Jean, ex-presidiário desempregado e dependente economicamente de Sarah, deseja fazer escapar Marcus (Issa Perica), o seu filho não-branco, de mãe martinicana, que vive com a avó paterna (Bulle Ogier) na periferia de Paris, ao “destino dos negros e dos árabes”. Paralelamente, num dos seus programas de rádio, Sarah entrevista o antigo futebolista francês Lilian Thuram, autor do livro La Pensée blanche (2022), que evoca o pensamento de Frantz Fanon para definir as construções normativas relativas à branquitude. Atente-se também na presença da cineasta franco-senegalesa Mati Diop no papel de Gabrielle.
O filme de Denis vai além das construções normativas — sejam estas de ordem racial, de género ou classe, segmentação que é, de resto, problematizada (note-se, por exemplo, a referência a Cahier d’un art de vivre: Cuba 1964–1978, diário íntimo do escritor haitiano René Depestre durante a Revolução Cubana) — precisamente através de uma poética e de uma política do espaço. O apartamento parisiense do casal, espaço metonímico, contém um segundo lugar de passagem entre o centro e a periferia, o dentro e o fora. A alternância entre as sequências interiores e exteriores — e as cenas filmadas na varanda, espaço limítrofe, sem dentro, nem fora — marca as transições entre a vida doméstica monogâmica do casal burguês e o adultério de Sara, bem como a progressiva confluência entre as duas linhas narrativas. Adquirindo uma importante dimensão formal, essas transições desconfinam os corpos, apontando para o seu livre-arbítrio e capacidade de resistência, em particular na sequência final. Se a figuração dos corpos em pathos dos amantes — corpos de afecto, “encarniçados”, corpos afectados pela história que volta espectralmente — desvela uma conexão inextricável entre a malaise individual, colectiva e histórica, a arquitectura espacial do filme dá a ver os interstícios entre o interior e o exterior, o centro e a periferia, o antigo espaço metropolitano e o ex-espaço colonial. Mas é talvez na relação entre Paris, onde o casal habita, e a sua periferia que essa intersticialidade devém mais premente. Os planos do carro de Jean atravessando o Boulevard périphérique que separa Paris da periferia não só tornam visível a “linha abissal”[1] entre as duas esferas, como, ao evidenciar a sua ligação e reversibilidade — nomeadamente através da “percepção panorâmica”[2] do espaço —, sugerem uma possível dissolução da divisão, poderoso gesto político e epistémico.
A reflexão sobre a relação entre o centro e a periferia apresenta também uma dimensão propriamente formal em Avec amour. O sistema formal do filme abraça uma estética do vazio e do inorgânico para figurar a clausura e a emancipação dos corpos num contexto pandémico e de reconfiguração da relação entre o humano e o maquinal. Os primeiros e primeiríssimos planos, bem como os planos-detalhe, acentuam esse duplo movimento, apontando para a redefinição do paradigma visual e para a crise da figura do observador, da sua relação com os dispositivos tecnológicos e da própria imagem.[3] Já a composição dos enquadramentos, recordando a pintura de Hammershøi e explorando o vazio da imagem[4], e a interpolação entre planos plenos e vácuos, sem personagens (paisagens urbanas, objectos do quotidiano, dispositivos tecnológicos), ex-centralizam a figura humana do espaço de representação e assim reforçam a tensão entre o campo e o fora de campo — fora de campo que é, ao mesmo tempo, narrativo e histórico. Se, desde Chocolat, Denis trabalha na sua filmografia a percepção e as estruturas perceptivas, particularmente através de uma mise en situation do olhar das personagens, a construção do lugar do observador é, em Avec amour, marcada por uma tensão entre o ponto de vista das personagens-dispositivos de visão da sociedade francesa e a perspectiva quase vigilante que sobre estas se coloca. Em certas sequências, como a do reencontro com François, o filme trabalha formas próximas do discurso indirecto livre, transposto por Pasolini ao campo do cinema[5], enquanto expressão de um agenciamento colectivo de enunciação para dar conta do vínculo indestrinçável entre o plano histórico e o plano individual, o político e o íntimo. Avec amour consolida, desta maneira, a singularidade da obra de Denis no panorama do cinema francês contemporâneo.
A autora escreve segundo a antiga norma ortográfica.
[1] Sousa Santos, Boaventura de, “Para além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”. Epistemologias do Sul / ed. Por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses. Coimbra: Almedina, 2009, pp. 23–71.
[2] Schivelbusch, Wolfgang. The Railway Journey. The Industrialization of Time and Space in the 19th Century. Los Angeles e Londres: University of California Press, 2014.
[3] Crary, Jonathan. 24/7. Londres e Nova Iorque: Verso, 2014.
[4] Moure, José. Vers une esthétique du vide au cinéma. Paris: L’Harmattan, 1997.
[5] Pasolini, Pier Paolo. Empirismo eretico. Lingua, letteratura, cinema: le riflessioni et le intuizioni del critico e dell’artista. Milão: Garzanti, 1991.
Raquel Schefer
Investigadora, realizadora, programadora e professora associada na Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris), Raquel Schefer é doutorada em Estudos Cinematográficos pela mesma instituição — com uma tese dedicada ao cinema revolucionário moçambicano — e mestre em Cinema Documental pela Universidad del Cine (Argentina). É autora do livro El Autorretrato en el Documental (Ediciones Universidad del Cine, 2008). Foi professora em diferentes universidades em França, em Espanha, na Argentina e no México e investigadora convidada na UCLA. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT. É coeditora da revista de teoria e história do cinema La Furia Umana.
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