A pobreza só se explica pela riqueza: o nada pelo tudo. O filme começa num estaleiro de construção civil, um sítio de futuro, só que o futuro não é para todos: o luxo escolhe os seus filhos. Nos arredores de Dakar, cresce uma enorme torre de vidro: um dedo esticado para o céu. (Um dedo médio: o empreiteiro não paga aos trabalhadores há três meses). Impedidos de sonhar e de fugir para cima (para a torre), resta uma fuga a estes jovens sem futuro: para a frente. Para o mar que olha a cidade toda, como um lençol a sacudir ao vento.
Salto atrás: com a independência de França, em 1960, o cinema do Senegal torna-se uma indústria de primeiras vezes. Em 1963, Ousmane Sembène filma a primeira curta-metragem de um homem africano negro, o primeiro filme narrativo rodado a sul do Sara. Esse belo filme, Borom Sarret (em português: O Carroceiro), é uma linha riscada na cidade: uma fábula sobre pobres e ricos. A moral da história (como bem sabe o empreiteiro acima) é que os segundos podem sempre enganar os primeiros: sem castigo.
Perversamente, esse e os filmes seguintes de Sembène (tanto o perfeito La noire de… como Mandabi, outros primeiros: a primeira longa-metragem senegalesa e o primeiro filme em uolofe, a língua mais falada no país) tiveram de ser reconhecidos pela Europa dos festivais e dos críticos. Encontram no YouTube um excerto de uma entrevista a Sembène. O entrevistador (francês) pergunta: “Os seus filmes são entendidos na Europa?”. Sembène responde (em francês): “A Europa não é o meu centro. A Europa está na periferia de África. Estiveram cá mais de cem anos e não falaram a minha língua, mas eu falo a deles. Para mim, o futuro não depende de ser entendido pela Europa. (…) Porque é que quer que eu seja o girassol que se vira para o Sol? Eu próprio sou o Sol.” A pergunta que Sembène devolve é: quem decide o que merece ser visto, quem determina o seu sentido (e porque é que é sempre o Ocidente)?
Mati Diop é franco-senegalesa, filha de dois países com um mar-a-meio: o que separava a metrópole da colónia. Em 2008, adulta, voltou a Dakar depois de muito tempo. Nesses anos, muitos jovens saíam pelo mar para ir a Espanha procurar trabalho, sobreviver: diziam “Barcelona ou a morte”. Vista da Europa, a migração é reduzida a uma questão de números (interessa o medo da soma): contam-se os muitos que chegam, os tantos que (por cálculo político) são barrados e devolvidos aos seus países, e todos aqueles que morrem à nossa porta. Mati Diop diz algo muito interessante sobre o título do filme: sobre a ideia de ponto de vista. Para os países europeus, a migração é um problema do Mediterrâneo, mas, para quem sai do Senegal, antes do mar que está no meio da terra há um outro mar maior para atravessar. (E muitos nunca chegam: porque o mar engole os seus mortos).
Ao mesmo tempo, Diop pergunta se o facto de esta geração valorizar tanto uma vida na Europa (em relação a uma vida no seu país) não será ainda uma ferida colonial por fechar (o mar-sangue aberto). Importa dizer que o Senegal aprendeu a ver-se como país novo também pelo cinema. Mati Diop é sobrinha de Djibril Diop Mambéty que, em 1973, realizou Touki Bouki. Nesse (outro perfeito) filme (com que este e outros filmes de Diop conversam), dois jovens amantes preparam a fuga para Paris. Brincam aos ricos, riem-se deles. A diferença é que então não se fugia por desespero, mas por sonho: o mundo era lá fora. Hoje, foge-se para o mar quando já não se pode viver em terra.
Ainda assim, Mati Diop diz: “Eu não queria falar só da juventude que sai e volta, porque há uma juventude que fica” (a fazer país). Apesar de ser sobre migração, o filme não é dos que partem, mas dos que ficam a olhar para o mar. (O amor entre os vagões). De novo, a ideia de recentramento: de como lemos as histórias. Quando dizemos (sem dizer muito) que o filme tem elementos fantásticos, que salta para fora do real, estamos a deixar contaminar-se a nossa leitura: porque a fantasia é um código narrativo (cinematográfico também) definido no Ocidente, como um corpo de histórias possíveis (porque impossíveis). Ignoramos que a realidade africana tem fantasia dentro: que a linha entre as duas (realidade e fantasia, vida e morte) é muito mais fina.
Mati Diop diz que este é um filme sobre a assombração. Não vos vou dizer o que acontece na segunda metade do filme, porque quero guardar-vos a possibilidade de assombração. Digamos apenas que o mar que levou é o mar que traz de volta. Um corpo cheio de mar. No filme todo, é o mar que fala, que nos enche os ouvidos de ondas. Herberto Hélder abre dois livros com estes versos de Henri Michaux, de um poema chamado “Telegrama de Dakar”, que eu vou agora mudar para português para não ter de contar o filme: “Falamos aos decapitados/Os decapitados respondem em uolofe”.
Ricardo Braun
Licenciado em Som e Imagem pela UCP, Ricardo Braun foi assistente de dramaturgia e encenação de Nuno Cardoso, Rogério de Carvalho e João Pedro Vaz. Em 2012, fundou a OTTO e coencenou Katzelmacher, a partir da peça e do filme de R. W. Fassbinder. Orientou o grupo amador do Ao Cabo Teatro, dirigindo-o em espetáculos a partir de textos de Jean Anouilh e Ben Jonson/Stefan Zweig. Traduziu, ainda, obras de Marius von Mayenburg, Lars Norén e Ödön von Horváth. Atualmente, leciona dramaturgia no Balleteatro e é livreiro na Livraria aberta.
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