Atanarjuat, Zacharias Kunuk
Marcos Cruz
25 de Março de 2023

Uma lufada de ar gelado na história do cinema

Das regiões árcticas do Canadá chega-nos Atanarjuat, de Zacharias Kunuk, o primeiro filme em língua inuíte da história do cinema. Há aí, desde logo, dois motivos de celebração: a certificação cinematográfica de uma retomada das comunidades esquimós à administração de algumas das suas antigas terras e a possibilidade que é conferida ao mundo inteiro de tomar contacto com um património cultural milenar nos antípodas daquilo que se convencionou identificar como desenvolvimento. Não fosse a equipa de filmagem quase toda constituída por pessoas que cresceram naquelas paisagens e dificilmente a tensão entre a crueza imemorial do objecto e a artilharia tecnológica do sujeito passaria despercebida.

A importância de vermos Atanarjuat prende-se também com o facto de hoje dificilmente termos outras hipóteses de observar a natureza humana fora das convenções sociais a que estamos acostumados nesta paisagem construída que é a dita civilização, regida por sistemas complexos e poderes inatingíveis. Ali, no meio da neve, tudo é mais directo, apesar da vastidão do que se alcança com os olhos. Não há ministros, parlamentares, políticos. Os valores comunitários, os códigos de honra, o que há para resolver resolve-se na hora, corpo a corpo, de acordo com as regras e leis acordadas. Qualquer atropelo a uma conduta moralmente admissível tem uma resposta marcada e, por muito que nos pareça radical ou até trágica a solução, o problema fica sanado.

A cultura destes nativos é fortemente ritualizada, mesmo as lutas não obedecem a impulsos descontrolados, elas são coreografadas por uma estrutura oficiosa de gestão de conflitos, o clã. Não é à toa que a palavra inuíte, no seu idioma, significa povo. A vivência familiar esclarece-nos sobre o lugar do indivíduo — ele é um ramo de árvore, podendo enquanto tal expor-se mais ou menos aos elementos.

Com temperaturas muito abaixo de zero, as peles de animais são usadas para cobrir o corpo dos esquimós, mas onde poderíamos suspeitar de um predomínio da função sobre a forma — fruto de um preconceito que nos leva a olhar estas comunidades ancestrais de cima para baixo — somos francamente surpreendidos. O casaco que Atanarjuat traz à mulher quando regressa do seu retiro de segurança faria decerto muita fashion victim da nossa era salivar de desejo. Mas se há coisa comovente neste filme é como a roupa não obstaculiza a ternura. Os abraços entre quem se estima penetram qualquer tecido, os gestos de amor são puro sentimento, o que colide desde logo com o materialismo a que estamos, nós os civilizados, submetidos. E nada se perde, com este great reset (nos antípodas da perversidade do imaginado por Klaus Schwab), em termos de possibilidade de analisar a natureza humana: as questões essenciais são as mesmas que as nossas, só estão é mais visíveis a olho nu. E confrontam-nos com a autofagia do processo civilizacional, que ao longo do tempo nos procurou afastar da animalidade crua, aproximando-nos, paradoxalmente, de uma outra, construída, que tende hoje a vingar-se sofisticada e cruelmente dessa repressão.

Atanarjuat não nos apresenta apenas uma comunidade remota, o filme propõe-nos um modo remoto de contar uma história. O caminho trilhado pelo cinema é aqui aberto pela ética da vida, com o cuidado de não vampirizar, não mutilar, não ferir aquilo que se documenta, embora estejamos a falar de uma ficção, onde até podemos sentir, esteticamente, reverberar a tradição do western — Zacharias Kunuk confessou, aliás, que em criança era um fã de John Wayne. Mas a paleta de princípios segundo os quais se rege a equipa do filme permite que falemos dele como o berço cinematográfico de uma civilização secular com raízes milenares, o que é um feito raro, ou mesmo único, nos tempos modernos. Em boa verdade, sem carros, sem armas que não paus e ossos, sem computadores — estes indígenas, caçadores-recolectores, vivem praticamente como se imagina que viveriam os seus antepassados de há 10 mil anos. Quando um europeu que não tenha telemóvel touch — eu que o diga — se vê aflito para ser funcional na sociedade contemporânea, é revigorante saber que culturas tão ancestrais ainda encontram condições de vida sobre a Terra.


O autor escreve segundo a antiga norma ortográfica.

Marcos Cruz

Licenciado em Comunicação Social pela Escola Superior de Jornalismo do Porto, integrou a redação do Diário de Notícias durante 16 anos, a maior parte dos quais como responsável pela secção de Cultura da delegação Norte. Colaborou com os jornais Correio da Manhã e Norte Desportivo e fez crítica de teatro, música e cinema, integrando o júri em vários festivais de cinema do país. É autor do livro Os pés pelas mãos (Coolbooks, 2018). Atualmente, é copywriter na Casa da Música e organiza e modera um ciclo de debates no Coliseu do Porto.

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