Luas Novas: Ana Mariz
Alexandra João Martins
15 de Setembro de 2023

Macacadas e Outros Assuntos Sérios


«A rose is a rose is a rose is a rose».

Gertrude Stein


«Coroai-me de rosas

E de folhas breves.

        E basta».

Ricardo Reis


É diante de uma cabra ocre e vidrada de António Ramalho, generosamente oferecida num acto de amizade e habitando em permanência nestas estantes, que me detenho agora sobre os filmes de Ana Isabel Mariz e sobre este texto. Comecemos, então, pelo futuro, por essa promessa de filme, qual flor prometida, de que apenas nos são revelados fragmentos: Todas As Rosas (2023), viagem ao bestiário (e à vida, lá onde não se separam) imaginado por Rosa Ramalho (1888–1977), na companhia dos seus descendentes e discípulos — os Ramalhos —, evocando em parte o fulgurante encontro da artista popular com certa elite intelectual e artística, nomeadamente com António Quadros: “– Como se chama? – Rosa; – Veio de onde? – Galegos; – Onde? – Barcelos. 60 km e o barro na cabeça”. Também na cabeça, esse imaginário, onde se confundem homens e animais, sagrado e profano, lendas, sonhos e tradições, em que o entendimento do mundo se constrói a partir daquelas mãos de terra que ora carregam a enxada, ora moldam o barro. Cabras, galos, burros, cobras, sardões, ouriços, lagartos, cristos, diabos, todos em feições antropomorfizadas, que revelam a tragicomédia da vida, quais sátiros nietzschianos explodindo de riso numa gargalha contínua. Que nos sirva o humor, por fim. De perto, sobre-dimensionando estas pequenas peças para a tela, a lente de Mariz permite-se revelar tais subtilezas grosseiras, como esse corpo feminino cujos seios se empinam exageradamente e uma criança boquiaberta irrompe do ventre numa imagem grotesca, ou ainda como essas sombras de diabos cabeçudos que se vão esfumando à luz diante de nós.


Sendo certo que só se pode filmar com verdade, isto é, ajustadamente, aquilo que se conhece na intimidade, em Matilde Olha Para Trás (2021), Mariz arrisca-se numa ficção rodada em contexto familiar. Abstendo-se em absoluto dos trejeitos biográficos e estéticos dos designados home movies, os interstícios desta ficção não deixam de revelar o universo rural minhoto: os brincos de ouro com que Matilde se adorna, a corrida nocturna no milheiral, a depenação da galinha, o espaço doméstico matriarcal, a encenação bíblica em jeito de procissão. Eis o retrato psico-geográfico de uma região, cuja religiosidade remonta, aliás, à primeira obra da realizadora, Vigília (2016). “Aprendi a ver na minha infância”, escrevia o poeta Ruy Belo, num verso que poderia servir de epígrafe a este filme. Mais do que representar a solitude infantil através de Matilde, que se refugia da aparente seriedade dos adultos em ficções próprias, Mariz coloca-se literalmente à altura de uma criança, dessa criança. Como uma criança que espreita sobre o ombro de outra criança, como nessa cena em que se escuta a conversa de duas adolescentes através de uma porta entreaberta para logo percebermos que ocupamos o lugar de Matilde, que então surge para tomar o seu lugar, como quando os diálogos dos adultos invadem o fora de campo, reiterando o alheamento no rosto da criança e resultando numa tensão latente permanente que nos traz à memória La Ciénaga (2001), de Lucrecia Martel. Qual matrioska de encenações — da vida familiar, das bonecas, da religião —, a realizadora agarra a experiência lúdica como experiência estética para lembrar que a “brincadeira é a coisa mais séria da vida” e que, como lembrava Walter Benjamin, não é um “fazer-de-conta”, mas um “fazer-sempre-de-novo”, campo infinito de possibilidades e de reconfigurações.


Portas, corpos, passagens compõem a matriz da cinematografia de Ana Isabel Mariz que tem também trabalhado como directora de fotografia e assistente de realização em diversas produções cinematográficas, entre as quais Nobody (2023), de Marcela Jacobina, e Silvestre (2021), de Rúben Gonçalves. Duas vidas acometidas numa sociedade em crise: crise económica, crise social, crise existencial, um outro modo de dizer miséria simbólica. Em Nobody, Marcela Jacobina explora as ambiguidades da vida emocional de uma camgirl que se auto-intitula nobody, revelando, desde logo, não só a crise de identidade que atravessa — entre si mesma e a personagem que encarna —, como também a ambição de uma condição anónima tão própria às ligações cibernéticas da actualidade. Ligações precárias já que à suposta hiper-sexualização da imagem do corpo corresponde, necessariamente, a falta de desejo no seu sentido mais alargado, de desejo de vida, sendo que o dispositivo adoptado — de câmara contra câmara, a que se soma uma terceira câmara ausente do desconhecido, qual rede de vigilância — revela o fluxo generalizado de informação que não deixa conter a atenção. Já em Silvestre, de Rúben Gonçalves, é o corpo-a-corpo que se manifesta de início a fim num realismo inóspito. O corpo que se entrega ao prazer, às lutas, ao trabalho. “Cansados vão os corpos para casa”, canta Sérgio Godinho sobre a “Lisboa Que Amanhece”. E lá vai Silvestre, sem saber bem para que casa, agora que as colegas decidiram ir morar sozinhas. Agora? Agora é Alvalade. Talvez Glasgow. E Silvestre junta-se então a António, de Silva Melo, que se junta a Xavier, de Manuel Mozos, “rapazes de Lisboa”, votados à displicência de uma cidade que pouco ou nada tem para lhes oferecer.

Alexandra João Martins

Licenciada em Ciências da Comunicação, mestre em Estudos Artísticos pela Universidade do Porto, e doutoranda em Estudos Artísticos na FCSH-Universidade Nova de Lisboa, tendo sido bolseira da FCT. Escreveu para diversas publicações. Colaborou e integrou os comités de seleção dos festivais Curtas Vila do Conde e Porto/Post/Doc. Em 2017, foi selecionada para o Talent Press Rio e, em 2018, comissariou a exposição Como o Sol/Como a Noite, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito da retrospetiva dedicada a António Reis e Margarida Cordeiro no Porto/Post/Doc.

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