Amorosa, Mai Zetterling
Raquel Schefer
15 de Julho de 2023

Realizada em 1986 pela cineasta, actriz e guionista Mai Zetterling, a longa-metragem Amorosa reconstitui a biografia da escritora Agnes von Krusenstjerna (Växjö, 1894–Estocolmo, 1940), cuja obra, de contornos auto-biográficos, desafia as convenções morais da sociedade sueca do período entre guerras através da exploração de temas como a loucura, a sexualidade e a emancipação feminina, e aproxima-se estilisticamente do Vitalismo literário escandinavo. Se a obra de von Krusenstjerna foi fundamental para redefinir o papel da mulher na sociedade sueca, a filmografia de Zetterling, que já em Loving Couples (1964), opera prima no formato de longa-metragem, adaptara o romance Fröknarna von Pahlen (1930–1935) da escritora aristocrata, constitui uma peça-

-chave para a constituição de uma genealogia mais complexa da história do cinema, reconsiderada a partir de uma perspectiva feminista. Zetterling, que começa o seu percurso como actriz de teatro e cinema — protagonizando, em 1940, o filme Torment, realizado por Alf Sjöberg e escrito por Ingmar Bergman, e Music in the Darkness (1948), do autor de Persona (1966) — inicia-se atrás da câmara em 1961, no Reino Unido, com o documentário Lords of Little Egypt. Numa entrevista a Susan Brison em Setembro de 1976, Simone de Beauvoir refere-se a Zetterling como “uma realizadora sueca que fez já excelentes filmes feministas”[1]. De Beauvoir colabora, aliás, com Zetterling na adaptação cinematográfica do seu ensaio Le Deuxième Sexe, projecto inacabado que procurava, segundo a filósofa e escritora francesa, servir-se do maior potencial do cinema, face à literatura, para propiciar “a tomada de consciência das mulheres”[2]. Se a filmografia de Zetterling é feminista, é-o no fundo e na forma.

Última longa-metragem para cinema de Zetterling (a cineasta realiza duas séries e um filme televisivos entre 1989 e 1990), Amorosa apresenta um rigoroso equilíbrio entre fundo e forma. Se Amorosa se debruça sobre a vida turbulenta de von Krusenstjerna, interpretada por Stina Ekblad — que interpretou Ismael em Fanny and Alexander (1982) de Bergman —, marcada por episódios de loucura, práticas sexuais transgressivas e uma reflexão sobre a determinação dos ciclos de produção/reprodução pelos sistemas de dominação, tais motivos constituem o motor da sua inventividade formal. O tratamento destas temáticas — e, em particular, da loucura — tem expressão na supressão da separação rígida — e na intermutabilidade — entre a esfera material e a esfera mental-cognitiva. Essa supressão encontra-se estreitamente associada à organização e à construção do ponto de vista subjectivo de von Krusenstjerna. Nas sequências iniciais do filme, em que von Krusenstjerna é internada num hospital psiquiátrico durante o Carnaval de Veneza, a esfera material, tal como representada cinematograficamente, é indestrinçável do domínio do irracional, do devaneio e da alucinação, dos estados perceptivos e cognitivos alterados da escritora. A figuração do Carnaval e do emascaramento inscreve-se, desde logo, numa dupla genealogia — numa estética anti-canónica, intersectada com tradições visuais como o maneirismo veneziano e o próprio cinema sueco moderno, incluindo a obra de Bergman, que reivindica a potência subversiva e revolucionária dos carnavais [3]; e numa reflexão sobre o poder e a sua encarnação (a sequência do hospital é eloquente a este respeito), na linha da peça de teatro Venice Preserved (1682), de Thomas Otway. Mais, a interacção dialógica entre a perspectiva da câmara — a representação dos elementos concretos do espaço veneziano no quadro de uma temporalidade inicialmente indeterminável — e o ponto de vista da personagem — a figuração da percepção alterada de von Krusenstjerna — opera uma confluência entre a esfera material e a irracional, o plano histórico e o plano individual, gesto de natureza formal e política. A (de)formação de uma tal perspectiva sobre o espaço da representação e o mundo é uma constante em Amorosa — por exemplo, na sequência da dança e na do bordel, enquanto expressão da embriaguez e do consumo de morfina. Atente-se também na função do campo sonoro, em especial nas conversas dos pais em voz-off, qual superego ressoando em von Krusenstjerna. Feminista e dialógica (porque estabelecendo um diálogo entre múltiplos pontos de vista) ao nível narrativo, essa perspectiva desierarquiza, indo além do naturalismo (e, em paralelo, de todo julgamento moral), a relação entre a percepção/representação normativo-realista e uma percepção/representação alterada do mundo. Dissolvidas hierarquias e fronteiras entre a percepção “natural” e a percepção alterada, alucinada, a loucura é, aqui, fundo e forma.

A construção narrativa de Amorosa, circular e cíclica, pautada pelas crises de von Krusenstjerna, reverbera o princípio de não-separação entre a esfera material e a esfera mental-cognitiva. Se o filme começa e acaba com a mesma sequência — a gôndola que leva von Krusenstjerna e o marido, o crítico David Sprengel, interpretado por Erland Josephson (actor icónico de Bergman, mas também de Andrei Tarkovsky e de Theo Angelopoulos), da villa italiana a Veneza, entre duas margens, campo/contracampo que rasga o tempo e cruza perspectivas, apontando para o fora de campo —, após a sequência veneziana, a narrativa desenrola-se em analepse, num cronológico flashback, desde a adolescência de von Krusenstjerna até ao seu último internamento. Porém, essa linha cronológica não só é cortada por importantes elipses temporais, como também por planos prefigurativos (o espelho em que von Krusenstjerna se vê reflectida como a mãe) e efabulativos (a queda do noivo ao rio), expressão dos estados alterados da personagem. As passagens entre os distintos blocos temporais são realizadas através da conexão entre superfícies líquidas luminosas reflectoras — as águas dos canais de Veneza devêm as do rio da adolescência na Suécia. A estrutura narrativa assenta, por conseguinte, num sistema de continuidades —e descontinuidades — entres espaços, tempos, estados e percepções do mundo.

Se Veneza é representada como uma cidade fechada, distintos níveis de descontinuidade marcam a relação entre os espaços exteriores e os espaços interiores. Essa descontinuidade manifesta-se, antes de mais, através da diferente iluminação — natural, solar, no caso dos décors exteriores; éclairage quase que em chiaroscuro, no que respeita aos interiores —, mas também do jogo de câmara, cuja frontalidade e movimentos, no caso das cenas interiores, recordam a rodagem de estúdio televisivo — e certas declinações bergmanianas e rossellinianas. A passagem dos décors exteriores para os interiores é acompanhada de um crescente anti-naturalismo da representação, epitomizado pelos cenários do quarto de solteira de von Krusenstjerna (atente-se na representação pictórica do barco fluvial), e de uma singular proxémica dos corpos, agora em contorção, numa possível alusão à escultura de Bernini e, em particular, ao Êxtase de Santa Teresa, desdobrando-se, tal como von Krusenstjerna, em curvas e contra-curvas⁴, entre o amor espiritual e o carnal. Amorosa é não só uma obra central da filmografia de Zetterling. O seu contributo é fundamental para descentrar a história canónica do cinema, história eurocêntrica focada no género de ficção, mas também em figuras e autores masculinos.


A autora escreve segundo a antiga norma ortográfica.


¹ de Beauvoir, Simone, “Un entretien avec Susan Brison”. Les Temps Modernes, n. 619, juin-juillet

2002 (1976), p. 17, tradução da autora.

² Ibid.

³ Bakhtine, Mikhaïl. L’OEuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la

Renaissance. Paris: Gallimard, 1970; Lefebvre, Henri. La Révolution urbaine. Paris: Gallimard, 1970.

⁴ Deleuze, Gilles. Le Pli. Leibniz et le Baroque. Paris: Minuit, 1988.


Raquel Schefer

Investigadora, realizadora, programadora e professora associada na Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris), Raquel Schefer é doutorada em Estudos Cinematográficos pela mesma instituição — com uma tese dedicada ao cinema revolucionário moçambicano — e mestre em Cinema Documental pela Universidad del Cine (Argentina). É autora do livro El Autorretrato en el Documental (Ediciones Universidad del Cine, 2008). Foi professora em diferentes universidades em França, em Espanha, na Argentina e no México e investigadora convidada na UCLA. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT. É coeditora da revista de teoria e história do cinema La Furia Umana.

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