No cruzamento entre a arte contemporânea, o cinema experimental, a literatura, o relato oral e a ficção científica, a obra da artista polaca Agnieszka Polska (Lublin, 1985) alia a experimentação formal com o pensamento de questões históricas, políticas e filosóficas, como a responsabilidade ecológica e os paradigmas perceptivos e cognitivos. Apresentando importantes paralelismos temáticos e formais, My Little Planet (2016), What the Sun Has Seen (2017) e The Happiest Thought (2019) adoptam as ferramentas de uma poética “situada”[1] para problematizar, de modo auto-reflexivo, o acto de ver, o estatuto do observador e o lugar do espectador.
Nos três filmes, o fundo espelha a forma da mesma maneira que a forma reflecte o fundo. Se os motivos da obra de Polska constituem o motor da sua inventividade estética, esta faz emergir perspectivas complexas sobre o presente, os processos de ver-saber e as formas audio-visuais. Através da tensão entre o campo visual e o campo sonoro (voz-off, música e concepção sonora) e da dialéctica entre as imagens animadas e indexicais, as três curtas-metragens operam uma espacialização do tempo (The Happiest Thought figura a Extinção Permo-Triássica, que ocorreu há cerca de 252 milhões de anos, estabelecendo correspondências com a actual catástrofe ecológica). A voz- off e a montagem (vertical e horizontal), enquanto elementos narrativos, produzem, paralelamente, uma temporalização do espaço. É precisamente a partir de uma reflexão sobre o espaço e o tempo (o título da curta-metragem de 2019 faz alusão à ideia que levaria Albert Einstein a formular a Teoria da Relatividade em 1915) — e sobre o cinema como prática espacial e temporal — que Polska examina, nestes três filmes, um conjunto de questões ligadas aos paradigmas perceptivos e cognitivos, aos processos de observação e produção de conhecimento e à objectividade como categoria historicamente modulada, problemas fundamentais quer no campo da ciência, quer no terreno do cinema, em particular no cinema documental e etnográfico.
My Little Planet alegoriza uma sociedade distópica em que o tempo é medido através dos movimentos de rotação no espaço de objectos banais do quotidiano, como a ponta de um cigarro. Os parâmetros e as unidades temporais, descritos nos intertítulos e ilustrados pelo som de um relógio de cuco, são figurados através da rotação astronómica dos objectos. Da mesma maneira que em What the Sun Has Seen e The Happiest Thought, Polska coloca aqui em tensão os elementos espaciais e temporais, a imagem e a palavra, o visível e o infigurável, instaurando um mecanismo, análogo ao da leitura, que interpela o espaço mental e a responsabilidade política do espectador. Fundando-se numa lógica de repetição e na exploração do desajuste entre o referente e o significante, My Little Planet evoca, em paralelo, o duplo sentido da palavra “revolução”: o seu significado etimológico, vigente até ao século XVIII, designando movimentos ou rotações astronómicas inelutáveis, e o seu sentido moderno, as revoluções políticas ou, nas palavras de Hannah Arendt, “os movimentos desordenados do destino humano”.[2] Se essa evocação remete para a emergência de uma nova relação entre o humano e o cósmico e para a separação entre o sujeito e o objecto de conhecimento com o advento da modernidade e do seu sistema científico, temas caros a Polska, evidencia também a dimensão política da sua obra, assente, entre outros aspectos, numa afirmação da capacidade da arte para reflectir e transformar o mundo. What the Sun Has Seen toma como título o poema homónimo da poetisa realista e feminista polaca Maria Konopnicka (1842–1910), descrição do quotidiano e das actividades de uma família rural, tal como observados pelo Sol. Contudo, Polska não só transpõe ironicamente o conteúdo do poema para o presente, como também complexifica a relação entre o observador e o observado. Os modos enunciativos da voz-off subentendem que a relação entre a perspectiva do observador e a do observado é reciprocamente construída. “O Sol viu a nossa pequena casa”, diz, por exemplo, a voz-off. A frase pressupõe uma perspectiva recíproca (ou intermutável): a perspectiva do Sol sobre a casa e os seus habitantes; o ponto de vista dos habitantes sobre o Sol (e a consciência do acto de observação). Esse modelo dialoga com certas concepções filosóficas e antropológicas que concebem a relação entre o observador e o observado em termos de reciprocidade, como a filosofia da percepção de Maurice Merleau-Ponty, ou em que se dissolve a oposição entre o sujeito e o objecto, como no perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro. A figuração visual e o discurso do Sol antropomórfico como que condensam a dimensão duplamente estética e epistemológica da obra de Polska. A constatação poética de um estado do mundo — a crise ecológica como consequência de “uma estratégia geopolítica mundial de exploração sem limites de todos os recursos humanos e não-humanos”[3] — assenta aqui numa problematização dos fundamentos da modernidade e, em particular, da separação entre o observador e o observado como um dos alicerces do seu paradigma perceptivo e cognitivo (e do cinema como um dos seus dispositivos de visão). The Happiest Thought dá continuidade a estas reflexões e metodologias. Através de outra figuração do espaço sideral e dos objectos que nele gravitam e da tensão entre imagem, voz-off e música, ambas a cargo do performer norte-americano Geo Wyeth, Polska estabelece paralelismos entre a Extinção Permo-Triássica e a catástrofe ecológica actual. Inscrevendo esse “acontecimento” na história, em ruptura com o próprio paradigma historiográfico, a artista articula o passado, o presente e o futuro. A figuração da Extinção Permo-Triássica através de técnicas de animação torna-se prefiguração e alerta do desastre potencialmente por vir. A cadência da voz- off, dialogando com os cursos populares de meditação online, explora os mecanismos de hipnose para interpelar e activar a esfera da recepção e instigar um espectador crítico, consciente e reflexivo. Da mesma maneira que em My Little Planet e What the Sun Has Seen, o som e a imagem são assumidos como formas que “pensam”[4] e agenciam mecanismos para a transformação do mundo.
A autora escreve segundo a antiga norma ortográfica.
[1] Haraway, Donna. Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and The Privilege of Partial Perspective, Feminist Studies, vol. 14, n° 3, 1988, pp. 575-599.
[2] Arendt, Hannah. De la révolution, Paris: Gallimard, 2012, p. 60, minha tradução.
[3] Alliez, Éric e Lazzarato, Maurizio. Guerres et capital, Paris: Éditions Amsterdam, 2016, p. 32,
minha tradução.
[4] Dubois, Philippe. La question vidéo. Entre cinéma et art contemporain, Crisnée: Yellow Now, 2011.
Raquel Schefer
Investigadora, realizadora, programadora e professora associada na Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris), Raquel Schefer é doutorada em Estudos Cinematográficos pela mesma instituição — com uma tese dedicada ao cinema revolucionário moçambicano — e mestre em Cinema Documental pela Universidad del Cine (Argentina). É autora do livro El Autorretrato en el Documental (Ediciones Universidad del Cine, 2008). Foi professora em diferentes universidades em França, em Espanha, na Argentina e no México e investigadora convidada na UCLA. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT. É coeditora da revista de teoria e história do cinema La Furia Umana.
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