The New Sun + The Day the Earth Stood Still
Raquel Schefer
9 de Dezembro de 2022

Construções temporais complexas marcam a ficção científica nas suas declinações transdisciplinares. É a partir do presente que o género se inscreve num horizonte temporal que contempla a reavaliação do passado e a projecção do futuro. Nas obras de ficção científica, o agenciamento do futuro gera instrumentos para a transformação do presente.

The Day the Earth Stood Still (1951), de Robert Wise, e The New Sun (2017), de Agnieszka Polska, (pre)figuram futuros possíveis através da “marcação profunda”, nos sentidos material e representativo, dos contextos geopolíticos e culturais em que a sua produção se situa. Se o filme de Wise se insere num espaço-tempo preciso — os EUA nos primeiros anos do pós-guerra, da Guerra Fria e do Macarthismo — e num momento singular da história do cinema — a transformação do cânone do Cinema Clássico nas décadas de 40 e 50 —, The New Sun, obra que exemplifica as articulações entre o cinema e a arte contemporânea, inscreve-se num contexto de crise do paradigma europeu e de catástrofe ecológica. Evidenciando uma concepção transversal da história do cinema, o diálogo entre os dois filmes dá conta de estados do mundo e aponta para o cinema como um campo produtor de efeitos de transformação.

Produzido pela 20th Century Fox, The Day the Earth Stood Still baseia-se no conto Farewell to the Master (1940), de Harry Bates. Com um elenco de luxo, que inclui Patricia Neal (Helen Benson), música de Bernard Herrmann (atente-se na utilização do theremin) e a colaboração de Frank Lloyd Wright na cenografia, o filme, cuja intriga se debruça sobre a chegada de um extra-terrestre a Washington — Klaatu, interpretado por Michael Rennie — com o intuito de salvar a Terra da ameaça nuclear, é um opus fundador da ficção científica no cinema. Em 1949, Wise recebera o Prémio FIPRESCI do Festival de Cannes com o filme The Set-Up. Colaborara com Welles em Citizen Kane (1941) e The Magnificent Ambersons (1942). Neste último filme, Wise substituíra Welles, visto como um enfant terrible pelos estúdios de Hollywood, tendo re-filmado algumas cenas e assinado a montagem final. Em 1973, realizará o musical West Side Story e, seis anos mais tarde, nova incursão na ficção científica, Star Trek: The Motion Picture.

The Day the Earth Stood Still situa-se sobre o pano de fundo da Guerra Fria e da proliferação de armamento nuclear, mas também do processo de descolonização do pós-guerra, a que os diálogos aludem. A chegada de Klaatu a Washington poderia ser percebida como a alegorização de uma re-colonização do território norte-americano por um alienígena antropomórfico (ao contrário do que é comum na ficção científica soviética), de boas maneiras, expressando-se perfeitamente em inglês e vindo de um planeta mais avançado a nível científico.

Contudo, The Day the Earth Stood Still não opera uma completa desperspectivação. Inversamente, ainda que alertando para a ameaça nuclear, o filme veicula a perspectiva ideológica da indústria cultural norte-americana, desde logo porque é em Washington que a nave espacial aterra, mas também mediante a reiteração dos princípios de individualismo, determinismo tecnológico, hegemonia política e submissão colectiva democrática a uma elite tecnocrática. Para tal, The Day the Earth Stood Still ampara-se num conjunto de dicotomias. A primeira é o contraste entre a representação da sociedade norte-americana, próspera e harmoniosa, e a figuração estereotipada de outros países, incluindo a Índia e a URSS, nas sequências de montagem. The Day the Earth Stood Still trabalha também as tensões entre o individual e o colectivo, o humano e o maquínico. A personagem de Klaatu é construída por oposição à figura não-autónoma do robot, apresentado como um prolongamento do organismo mais desenvolvido e humano do alienígena.

O genérico e a primeira sequência (note-se a fluida transição entre estes segmentos) servem-se de uma estética não-realista para tornar sensível a experiência do espaço e a entrada na atmosfera terrestre. Contudo, o filme adopta nas restantes sequências o “realismo ficcional”, forma artística por excelência do cinema de Hollywood segundo Thomas Elsaesser, para figurar a sociedade norte-americana do início da década de 50. A dimensão histórica de The Day the Earth Stood Still é dupla: se, por um lado, o filme é eloquente com respeito à visão que os estúdios procuram veicular sobre a sociedade norte-americana e a sua relação com o mundo, é-o também em termos da concepção colectiva do passado (o espectro da II Guerra Mundial) e do futuro (o porvir da Guerra Fria), bem como em relação à própria história do cinema (a adopção das convenções do realismo ficcional na ficção científica e a sua função na veiculação da perspectiva ideológica do filme).

The Day the Earth Stood Still apresenta, porém, certas rupturas formais. Ainda que de maneira menos incisiva que em Paris qui dort (1924), de René Clair, problematiza o movimento como especificidade do cinema, aproximando-se, nas sequências do grande corte eléctrico, das sinfonias urbanas das décadas de 20 e 30. Ao debruçar-se sobre o acto de ver, o lugar do observador e os processos de representação, suscita também um encadeamento auto-reflexivo de olhares, mise en abyme da própria posição espectatorial.

Os paralelismos entre The Day the Earth Stood Still e The New Sun são múltiplos. É mediante um jogo de forças entre os “astra" e os “mostra” que The New Sun se debruça sobre o acto de observação. Através de técnicas de animação, um Sol antropomórfico, cuja iconografia dialoga quer com tradições extra-europeias, quer com o cinema dos primeiros tempos, observa e discorre sobre a vida na Terra. Se, em The Day the Earth Stood Still, Klaatu é, à primeira vista, um observador de primeiro grau do quotidiano de Washington, o filme da artista polaca funda-se num princípio de intermutabilidade entre a esfera do observador e a do observado, transposto numa relação complexa entre campo, contracampo e fora de campo. O Sol interpela o espectador directamente, a«propósito, entre outros aspectos, da sua cumplicidade no desastre ecológico, mas esse mecanismo gera um entrecruzamento de olhares no espaço da representação, reforçado nas sequências — cruzamentos entre a fabulação e o documental — em que o o núcleo solar é ocupado por imagens indexicais da vida nas cidades. Da mesma maneira que em The Day the Earth Stood Still, a activação da esfera da recepção, porvir do filme, forma um fora de campo histórico e utópico, contribuindo para o agenciamento de futuros possíveis e para a transformação do presente.


A autora escreve segundo a antiga norma ortográfica.



Raquel Schefer

Investigadora, realizadora, programadora e professora associada na Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris), Raquel Schefer é doutorada em Estudos Cinematográficos pela mesma instituição — com uma tese dedicada ao cinema revolucionário moçambicano — e mestre em Cinema Documental pela Universidad del Cine (Argentina). É autora do livro El Autorretrato en el Documental (Ediciones Universidad del Cine, 2008). Foi professora em diferentes universidades em França, em Espanha, na Argentina e no México e investigadora convidada na UCLA. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT. É coeditora da revista de teoria e história do cinema La Furia Umana.

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