A Árvore, André Gil Mata
Em 2017, André Gil Mata, então a estudar cinema em Sarajevo, filma uma carta à sua avó Alzira dois anos após a morte dela (tão importante e tão bonita, a avó Alzira): uma carta contra o esquecimento e contra a distância. Nela, esboça as ideias para dois filmes, e de uma delas resultou este, Drvo (em português, A Árvore). Era mais ou menos assim: filmar a história de uma cidade e de duas guerras. E o filme começa com um longo, rigorosíssimo plano de 15 minutos: telhados cobertos de neve (a neve de que ele fala à avó, a neve de Sarajevo, que espalha uma luz azul); depois a vidraça de uma janela, onde uma criança desenha com o dedo; depois um lento recuar, sobre o tampo da mesa, os pratos e os copos, os barulhos da loiça; depois a mãe junta-se à criança e desenha com ela no vidro; e a câmara faz o que pode para não perturbar aquela paz, para continuar a recuar lentamente enquanto revela, aos poucos, a cama, o fogão, o quarto todo. Deixemos já aqui a primeira ideia-chave que percorre os filmes de André Gil Mata: a ideia de tempo e da sua passagem. Se quisermos, a ideia do cinema como garante da memória e da atenção, ou como máquina do tempo, capaz dos saltos mais rápidos e das revelações mais lentas.
Mas já cá voltamos. Porque o primeiro plano do filme ainda não acabou. Quando para de recuar, a câmara passa um umbral, ou outra janela, e varre agora uma parede, lentamente, para a direita: cada fissura, cada imperfeição. Depois entra noutro quarto, ou no mesmo, e começa a avançar, com a mesma lentidão. Está um velho deitado na cama, outra ou a mesma, e a mesma ou outra janela parece já não ter vidraças. Aqui e além um clarão, um rebentamento, uma fiada de tiros. Mas pelos rasgões do papel que cobre a janela vemos que os telhados são os mesmos. A neve azul é a mesma. E a cidade está em guerra: outra vez. Chegamos à segunda ideia-chave do cinema de Gil Mata: a de repetição. Porque a releitura ou o regresso revelam o que o tempo sozinho não consegue revelar. Como aqui: a guerra é outra, é uma guerra nova, mecanizada, os barulhos são outros — o som, já agora, é a terceira ideia-chave para Gil Mata, mas ainda agora começámos a falar da segunda. A guerra é outra, dizia eu, mas é a mesma guerra que, como saberemos mais à frente, leva a mãe daquela criança, e que força tanto a criança como o velho a andarem com a vida às costas.
Ensaiemos uma ideia muito brevemente. A ideia de cinema como vidro, mas de dois tipos diferentes: o vidro-retrato e o vidro-paisagem. O primeiro é o que parece: é o espelho, e os filmes-espelho refletem quem os faz com mais ou menos distorção. O segundo tipo, o de filmes como este (exatos, atentos) é mais complicado. Porque há a janela de onde vemos os telhados cobertos de neve, mas também o vidro onde desenhamos com o dedo, por cima da paisagem. Como é esse desenho? Ele revela ou esconde a paisagem?
Vou confessar uma coisa: quando falei da ideia que deu origem a este filme, não vos disse tudo. A ideia tinha uma segunda parte: filmar a história de um homem e duas guerras. (Um corpo-cidade: que marcas carrega ele?) Foi de propósito: o que eu fiz foi esconder para revelar. E o mesmo é verdade na forma como Gil Mata trabalha a imagem, com a ajuda do som. Voltamos à terceira ideia-chave. O desenho de som (e o filme não tem música, apenas ruídos, muitos deles recorrentes na sua obra: o mecanismo do relógio, o mastigar das botas na neve, a respiração difícil, o tinir dos garrafões, o bater dos remos na água, a corrente do rio, o fogo), ao dar um ritmo, ou um batimento, ao filme, fá-lo desacelerar e substitui a função narrativa das imagens. Deixa-as livres para dizer pouco. Para esconder. E põe do nosso lado o trabalho de preencher os vazios. Por exemplo: Gil Mata trazia uma imagem para este filme, a de uma figura negra na neve, junto a uma árvore na margem de um rio, a tentar aquecer-se. O que é que ela esconde e o que revela? O que há por trás do vidro?
Há pouco falava de memória e de atenção e de regresso, mas podia ter dito o mesmo de uma forma muito mais breve: amor. O cinema como carta de amor. O que são os seus filmes sobre a avó Alzira senão isso mesmo? O que é a persistência do olhar e a paciência, e a dor e a saudade? Se quisermos, a câmara de André Gil Mata enamora-se do seu objeto e prepara-se para o dia em que ele vai morrer. Sabe-o, e não quer sabê-lo. No fim do filme, o velho tenta contar um segredo à criança, mas ela não o compreende. Nem poderia. Feliz, ou infelizmente, ainda tem uma vida inteira para morrer.
Ricardo Braun
Licenciado em Som e Imagem pela UCP, Ricardo Braun foi assistente de dramaturgia e encenação de Nuno Cardoso, Rogério de Carvalho e João Pedro Vaz. Em 2012, fundou a OTTO e coencenou Katzelmacher, a partir da peça e do filme de R. W. Fassbinder. Orientou o grupo amador do Ao Cabo Teatro, dirigindo-o em espetáculos a partir de textos de Jean Anouilh e Ben Jonson/Stefan Zweig. Traduziu, ainda, obras de Marius von Mayenburg, Lars Norén e Ödön von Horváth. Atualmente, leciona dramaturgia no Balleteatro e é livreiro na Livraria Aberta.
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