All That Jazz
André Tecedeiro
27 de Março de 2024

“O que posso dizer sobre o meu convidado? Este gato permitiu-se ser adorado, mas não amado, e o seu sucesso no show business só foi igualado pelo fracasso nas suas relações pessoais.”


Em All That Jazz, Roy Scheider interpreta Joe Gideon, um detestável realizador e coreógrafo da Broadway viciado em trabalho, sexo, nicotina, álcool e anfetaminas. Todas as manhãs exclama ao espelho “It’s showtime, folks” (Better Call Saul veio beber aqui), mas o ritual torna-se mais decadente a cada dia.


Logo no início do filme, Joe é um homem na corda bamba, num flirt com a morte, tentando lidar com a sua finitude, a sua obra, o seu ego—“Oh, isso é muito teatral, Joe”, comenta a morte, sedutora, envolta em véus brancos.


Gideon trabalha obsessivamente em vários projetos simultâneos. De dia, é coreógrafo na Broadway e à noite edita um filme acerca de um comediante que faz piadas sobre a aceitação da morte. Mesmo internado, tem alucinações em que continua a coreografar e a dirigir como se tudo na vida fosse espetáculo.


Se All That Jazz é a vida turbulenta de Joe transformada em espetáculo, é também a vida e o espetáculo de Bob Fosse, o realizador do filme, coreógrafo da Broadway e cocriador de Chicago.


Há muitas semelhanças entre Joe e Bob.


Tal como Gideon, Fosse era perfeccionista e viciado em trabalho, nicotina e dexedrine. Sofreu um primeiro ataque cardíaco em 1974, numa fase em que simultaneamente ensaiava Chicago e editava um filme sobre o comediante Lenny Bruce.


Bob Fosse também teve conflitos com produtores que lhe pediam coreografias com mais adequação social e menos controvérsia.


Ann Reinking, atriz e bailarina que interpreta a namorada de Joe, era ex-namorada de Bob Fosse na vida real. E teve de fazer casting para o papel, não fosse haver alguém capaz de a interpretar melhor do que a própria. Reinking, numa entrevista ao The New Yorker, esclarece que achou isso normal, já que sempre teve de fazer casting para tudo.


Quanto ao anjo da morte, foi interpretado por Jessica Lange, que naquela época era a namorada de Fosse.


Onde estão os limites entre a ficção e a vida real?


É perturbador que Bob Fosse tenha realizado, coreografado e coescrito uma comédia musical sobre a sua vida onde se retrata de uma forma tão sórdida.


Se Joe Gideon é um personagem desagradável em 1979, o seu comportamento é ainda mais desconfortável em 2024, quando já não se tolera que alguém numa posição de poder se relacione sexualmente com pessoas com quem trabalha. O comportamento predatório de Joe tem outra leitura depois do movimento #metoo.


As relações de Gideon com as mulheres são violentas e disfuncionais e, embora o filme esteja cheio de mulheres talentosas, elas estão lá para seduzir, para serem observadas, rejeitadas, desapontadas. Mesmo doente, não tem melhoras e no hospital assedia as enfermeiras. Quando é levado para a sala de cirurgia, alucina e pede desculpas à ex-mulher pelo que lhe fez e à atual amante pelo que ainda lhe fará.


Joe lida com dificuldade com os podres do showbizz, mas também contribui para a podridão.


E depois há momentos inesquecíveis.


A sequência de abertura, um registo quase documental de uma audição, capta os aquecimentos, a espera, o nervosismo num crescendo de energia e afinação. E há a inquietante sequência da leitura do guião, em que todo o som é retirado. Resta apenas a respiração de Joe e os ruídos amplificados dos seus movimentos ansiosos.


A especialidade de Bob Fosse é servir temas pesados em coreografias ousadas e em All That Jazz isso pode passar por transformar uma cirurgia de peito aberto num número musical ou por coreografar alucinações hospitalares exuberantes.

André Tecedeiro 

André Tecedeiro é poeta, dramaturgo e artista plástico. É licenciado em Pintura (FBAUL) e em Psicologia (FPUL) e mestre em Artes Plásticas e em Psicologia do Trabalho. Publicou oito livros de poesia em Portugal, Brasil, Colômbia e Espanha, entre os quais A Axila de Egon Schiele (Porto Editora, 2020), recomendado pelo Plano Nacional de Leitura. Os seus poemas estão representados em mais de vinte revistas literárias e antologias. Para teatro, escreveu Joyeux Anniversaire (2021), Desfazer (2021) e O Ensaio (2023).

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